Qual é o dever maior do Estado senão proteger a população? A “cidadania” e a “dignidade da pessoa humana” são elementos que aparecem como fundamentos no Art. 1º da Constituição Federal de 1988; e como princípios no Art. 1º da Constituição do Estado da Paraíba. Após uma crise sanitária e econômica sem precedentes causada pela pandemia de covid-19, a tragédia que assola o Brasil, com mais de 337 mil mortes e 13 milhões de infectados, é resultado das gestões à frente dos Poderes Executivos. Quem pode fazer para salvar vidas tem fechado os olhos.
O dilema entre morrer de fome ou de covid-19, imposto pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido), já nem faz mais sentido. O povo está à beira da morte, de uma forma ou de outra, e as decisões dos gestores públicos têm causado mais mortes e ampliado desigualdades sociais.
A única saída para evitar novas tragédias diárias passa pelo tripé lockdown, seguridade social e vacinação. Após novo recorde de mortes em um dia, com 4.195 brasileiros que perderam suas vidas, fica cada vez mais evidente que o projeto dos prefeitos e governadores é esperar a pandemia passar para depois fazer a contagem de óbitos.
A postura do presidente da República é clara em diversos aspectos, desde a negativa à compra de vacinas, ainda em 2020, ao negacionismo, com indicação de remédios que não funcionam e enfrentamento às evidências científicas. A medida mais eficiente para conter o avanço do novo coronavírus é o lockdown. Está provado pelos resultados apresentados nas cidades onde foi feito, assim como é apontado como solução por especialistas nas áreas de economia e saúde pública.
A desculpa de que a economia não pode parar é absolutamente desumana. O Brasil está afundado no buraco em decorrência das decisões tomadas ao longo da pandemia, principalmente pelo comando central, mas também por governadores e prefeitos. Não é sensato defender o funcionamento normal das atividades. Não existe normal, novo normal, ou qualquer condição que se aponte dentro da normalidade quando não há, ao mesmo tempo, emprego, segurança alimentar e suporte na saúde pública. Todas as áreas estão em colapso.
Esqueçamos por ora o presidente da República. O que é possível fazer nos estados e municípios, considerando que as doses das vacinas capazes de imunizar a população chegam a conta-gotas? Dizer que não há dinheiro suficiente para bancar um lockdown é extrema falta de coragem dos governantes. Se uma pandemia acontece uma vez a cada século, a prioridade de um mandato com duração de quatro anos diante deste problema deve ser unicamente salvar vidas. Recorra ao Tesouro! E, se necessário, também ao endividamento. A economia se recupera depois. As vidas perdidas não têm preço. Todas as obras e investimentos ficam para outro momento.
É preciso concentrar todos os esforços das Receitas estaduais e municipais para assegurar a comida na mesa de quem precisa ficar em casa para salvar a própria vida e as dos seus familiares. Na Paraíba, com mais de 6 mil mortos pela doença, o governador João Azevêdo (Cidadania) anunciou um pacote de obras de mobilidade que totalizam R$ 435,17 milhões em investimentos. A conversa é muito bonita, mas quando esse dinheiro supostamente aplicado na retomada da economia de fato passará a circular? Nem tão cedo. O processo de abertura de licitações não se concretiza do dia para a noite, e a fome não espera.
Da parte do governador chamou ainda mais atenção a reabertura quase total das atividades após recordes consecutivos de mortes no estado. A justificativa era de que os dados da Secretaria de Estado da Saúde apontavam para redução e controle de mortes. Os dados não foram apresentados em detalhes, tampouco o número de mortos caiu de forma significativa. A média de mortes dos últimos dias desde a reabertura continua acima dos 40 óbitos por dia. No Sertão da Paraíba não há mais leito de UTI disponível para pacientes contaminados pela covid-19 em estado grave. Em Patos, no Complexo Hospitalar que é referência na região, uma a cada três pessoas internadas com covid-19 não sobrevive.
Ainda sobre o último decreto editado pelo governador João Azevêdo, foi marcante a enxurrada de críticas contra o gestor por conta da decisão de reabrir absolutamente tudo, com exceção das escolas. A questão não era sobre abrir ou fechar, já que os números apontam que a Paraíba ainda enfrenta uma situação de colapso no sistema público de saúde. O mais prudente seria endurecer as medidas restritivas até que a situação melhorasse, de preferência com um lockdown severo, como ainda não foi feito por nenhum gestor paraibano. Ao liberar bares e fechar escolas, João foi duramente criticado nas redes sociais, imediatamente após a divulgação do decreto.
Mais estranho ainda foi o acordo entre cavalheiros anunciado pelo prefeito Cícero Lucena (PP) como “diálogo institucional” ainda no sábado (3). De acordo com o prefeito, foram definidos os pontos dos decretos que seriam editados pelo Governo do Estado e pela Prefeitura de João Pessoa. João Azevêdo divulgou o seu decreto no mesmo dia e sofreu sozinho o desgaste. Cícero esperou dois dias, divulgou o decreto municipal somente na segunda-feira (5), com a permissão para abertura das escolas em modo presencial para os ensinos Infantil e Fundamental I. Além de enfrentar o decreto estadual, a publicação na edição especial do Semanário Oficial foi datada do dia anterior (4), poupando as escolas que abriram na segunda-feira à revelia da então legislação vigente.
Ao assinar embaixo as medidas que beneficiam alguns setores da economia na capital e manter a educação da rede privada no modo on-line, o prefeito Cícero Lucena também tem sido cobrado pela total ausência de ação do poder público no que diz respeito à educação infantil. Profissionais da educação que trabalham com esta faixa etária defendem a importância da socialização para o desenvolvimento das crianças. Há exemplos de escolas da rede privada que reabriram e não houve surto de covid-19, porém são instituições de ensino voltadas para a elite econômica. Escolas que investiram em infraestrutura e capacitação de toda a equipe, adotaram protocolos eficientes e alcançaram bons resultados, porém, as mensalidades custam de um a três salários mínimos.
Apesar do confronto de interesses entre estado e município, o recado dado à população após um dia da publicação do decreto do prefeito Cícero Lucena foi que a Justiça na Paraíba não será acionada se o gestor em questão for um aliado político. Quando os prefeitos de Campina Grande, Cabedelo, Conde e Bayeux decidiram enfrentar o Decreto 41.086, trazendo medidas mais frouxas que as determinadas pelo Governo do Estado, como permissão de cultos religiosos presenciais e abertura de bares no fim de semana, João foi à Justiça e ganhou. Desta vez, Cícero reagiu e João consentiu. O prefeito, que é mais experiente, cresceu pra cima do governador.
Além de todos os problemas já citados, estado e municípios se vangloriam dos números da vacinação com aplicações de primeiras doses dos imunizantes. No entanto, mais de 70 mil vacinados contra covid-19 na Paraíba não tomaram segunda dose. O que tem sido feito pelo poder público? Quase nada. Os apelos na mídia e nas redes sociais têm surtido pouco efeito, ao passo que as prefeituras seguem a recomendação do Ministério da Saúde e esgotam as doses das vacinas com primeiras aplicações. Enquanto a vacinação avança por faixas etárias, há grande risco de uma cobertura vacinal frágil expondo justamente pessoas mais idosas e, muito provavelmente, com menos acesso à informação. Não adianta vacinar em primeira dose e não concluir a imunização. É preciso empreender mais esforços, investir mais em campanhas publicitárias e empregar todos os instrumentos da gestão sanitária na busca ativa para preservar estas vidas. São 70 mil vidas que em meio à pandemia podem impactar muitas outras devido à lacuna na cobertura vacinal. Esperar que estas pessoas vejam o chamado para a segunda dose no Instagram é política de faz de conta.