Marina Magalhães é jornalista, professora e pesquisadora. Doutora em Ciências da Comunicação (Universidade Nova de Lisboa), mestre em Comunicação e Culturas Midiáticas e bacharel em Comunicação Social (Universidade Federal da Paraíba). Instagram: @marinamagalhaes_m
Marina Magalhães é jornalista, professora e pesquisadora. Doutora em Ciências da Comunicação (Universidade Nova de Lisboa), mestre em Comunicação e Culturas Midiáticas e bacharel em Comunicação Social (Universidade Federal da Paraíba). Instagram: @marinamagalhaes_m
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O fenômeno Juliette (e a resiliência dos cactos)
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(Foto: Divulgação/Lara Imperiano)

Em um primeiro momento, é de se estranhar que em meio a uma pandemia um programa de televisão criado há vinte anos – hoje em sua 21ª edição – seja um dos assuntos mais falados do Brasil. À segunda vista, é de se compreender que em meio a uma pandemia, que há um ano conta mortos, infectados e desempregados, diariamente, em horário nobre, a grande massa anseie por um bálsamo midiático – entre uma novela repetida e outra notícia de Covid-19. Para completar, o brasileiro tem uma queda por heróis e, diante do desgaste dos mitos políticos, Juliette Freire, participante do Big Brother Brasil 21, surge como a heroína perfeita para os media.

Hoje uma das mulheres brasileiras mais seguidas no mundo digital (mais de 20 milhões de seguidores no Instagram, na última contagem), a paraibana entrou no programa de entretenimento na condição de anônima, uma mulher comum – como essa que aqui escreve ou como outras que me leem. O que faz dela a heroína perfeita nesses tempos pandêmicos, capaz de desbancar nomes como Madonna, Bruna Marquezine, Gisele Bündchen, entre outras instagramáveis? Justamente o fato de ser imperfeita, em rede nacional, sem qualquer vergonha de sê-lo.

Juliette tropeça em cenários, erra nas amizades, perde quase todas as provas que garantem liderança, prêmios ou proteção. É alguém que se mete onde não é chamada. Que se esmera para conquistar o seu espaço, mesmo quando dizem que ali não lhe cabe. E que fala, fala muito, fala até demais e com um acentuado sotaque nordestino – em um mundo pouco disposto a nos ouvir. Talvez por isso seja tão perseguida dentro do programa, sendo o alvo preferido dos colegas nas placas e críticas do Jogo da Discórdia (espécie de atração em que os participantes são estimulados a julgarem – para não dizer ofenderem – uns aos outros).

Mas sua trajetória não para por aí. A personagem do reality show sai do lugar de vítima – de rejeição, de xenofobia, de fofocas e outras mesquinharias – para um lugar de brio. Após uma fase de acanhamento, passou a enfrentar os seus adversários com altivez, trazendo à tona a resistência que construiu a partir das origens simples e de infortúnios que enfrentou nos 30 e poucos anos de vida – como a perda precoce da irmã, aos 17 anos, vítima de AVC, mesma doença que sofreu sua mãe, a quem Juliette ensinou a ler e a escrever.

No reality show, a advogada que ganhava a vida como maquiadora profissional dança entre cascas de banana e ainda canta, sem perder o tom. De batom vermelho e arrumada, enquanto embarangamos de pijama trancados em casa, na frente da tevê, por força do isolamento social. Sua capacidade de lidar com as adversidades, o que chamamos de resiliência – expressão da moda que nunca fez tanto sentido (ou falta) nos tempos de pandemia –, é simbolizada pela figura de um cacto. Mais precisamente de um mandacaru, que não só “flora lá na seca” anunciando a chegada da chuva no Sertão, como cantou Gonzagão, como apresenta alta resistência nos períodos de estiagem.

Pela beleza, durabilidade e adaptabilidade do cacto, a espécie já era o símbolo do povo nordestino. Agora, a planta ganha os feeds apropriada por Juliette, cuja imagem é também atrelada a uma Maria Bonita pop. É também de “cactozinhos” que o competentíssimo time de administradores das redes digitais da participante chama os integrantes do #TeamJuliette – torcida que inclui nomes como Fátima Bernardes, Angélica, Xuxa, Fabrício Carpinejar e outros olimpianos.

Toda a alienação é, antes de tudo, uma distração. Assim, Juliette ocupa o espaço de entretenimento que uma nação castigada – pelo coronavírus e por tantos vermes políticos – deseja assistir no lugar de (ou para) encarar a overdose de notícias tristes. Em outras palavras, uma descarga de dopamina: “depois de tanto sofrimento, uma merecida e grande recompensa”, como disse a professora e pesquisadora Ligia Salles em seu artigo no El País. Tanto que já há escolas de samba disputando Juliette como enredo de um carnaval que ninguém sabe se virá em 2022.

Se a religião foi um dia o ópio do povo, como imaginou Marx, ou se o futebol veio a ocupar esse papel, como na frase atribuída a Nelson Rodrigues, o Big Brother Brasil surge como o novo ópio midiático de uma nação no auge da pandemia. De fato, a arte nos oferece uma miríade de formas mais enriquecedoras de alienação – ou, quem sabe, até de meios para nos fazer despertar para o que realmente importa. Mas não se pode negar que Juliette é hoje o sintoma de um Brasil que sofre, resiste e quer vencer. Um país que não quer luxo, nem lixo, só saúde para gozar no final (como cantou Rita Lee), quando tudo isso acabar.

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