“Gattaca: A Experiência Genética” é um filme obrigatório para todos os alunos dos cursos de ciências biológicas, biotecnologia e similares. Outros cursos de graduação talvez tenham seus filmes de estimação, mas talvez Gattaca deva ser adotado nas escolas de ensino médio, como alerta do que pode acontecer (ou já acontece) em nossas vidas. A arte, novamente, em uma de suas funções, educando e informando.
O filme de 1997 trata de um futuro onde os dados genéticos da população estão disponíveis para que decisões sobre as vidas de seus cidadãos sejam tomadas a partir dessas informações. Nesse sentido, o protagonista sonha em exercer uma profissão e, por causa de uma comorbidade cardíaca, não pode concorrer à posição e assume uma nova identidade em busca dessa oportunidade, que seu DNA, desde cedo, impossibilitou que o fizesse.
A pandemia nos trouxe um pouco desse futuro, quando dados sensíveis, como comorbidades, hoje podem ser acessados no site da Prefeitura de João Pessoa, com os nomes completos de seus cidadãos, parte de seus CPFs, quando e onde foram vacinados, por quem, o tipo de vacina, o sistema de origem, a dose e a razão pela qual tomou. A ideia de tornar esses dados públicos é em decorrência da garantia da transparência durante a execução de todo o processo de vacinação. Estamos em uma corrida maluca pela sobrevivência, onde mais de 593 mil morreram, com uma grande maioria, sem possibilidade de lutar contra um fim diferente. Por falta de leitos, equipamentos ou porque a vacina, já existente desde o fim de 2020, não chega à população, suspeita-se, de forma recorrente, sobre privilégios e surgem dúvidas em como ocorre o processo de vacinação e se tudo isso acontece de forma democrática e justa.
A transparência dos dados baseia-se no artigo 5º da Constituição Federal e garante o direito ao acesso às informações da Administração Pública. A Lei de Transparência (LC 131/2009) facilitou ainda mais o acesso a esses dados, uma vez que alterou a Lei de Responsabilidade Fiscal (LC 101/2000) e passou a exigir que União, Estados e Municípios disponibilizassem, em meio eletrônico e em tempo real, informações pormenorizadas sobre sua execução orçamentária e financeira. O principal objetivo, portanto, dos Portais de Transparência é ser uma ferramenta que permita que a sociedade fiscalize o Estado, ou seja, atue no Controle Social, assegurando que os recursos públicos sejam bem empregados em benefício da coletividade.
Nesse cenário, surge a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD — Lei nº 13.709/18), inspirada na GDPR (General Data Protection Regulation), que entrou em vigor em setembro de 2020. Na área da saúde, por tratar de dados sensíveis, a lei determina regras mais rígidas para o seu tratamento e busca garantir mais segurança e transparência aos pacientes (titulares). No entanto, no seu Art. 7º, o tratamento de dados pessoais somente poderá ser realizado em algumas hipóteses, dentre elas, no inciso VIII, para a tutela da saúde, exclusivamente, em procedimento realizado por profissionais de saúde, serviços de saúde ou autoridade sanitária. Nesse sentido, engloba uma situação de pandemia e a realização da vacinação pelo Sistema Único de Saúde.
Tornar os dados transparentes permite que a população participe do controle do processo e aja como fiscal, denunciando irregularidades. No entanto, quem garante o uso desses dados apenas com esse fim? Como garantir que planos de saúde, seguradoras ou bancos não usarão essas informações para aumentar o valor de seus produtos para os portadores de comorbidades? Serão alterados valores de crédito baseados na sua saúde, agora exposta, de forma transparente, ao mundo inteiro? Um empregador poderá decidir pela admissão de um novo funcionário utilizando a informação sobre sua condição de saúde, até então desconhecida e não exigida para sua contratação?
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Como se parece um cientista?
Para essas discussões e muitas mais que surgirão, o governador João Azevêdo assinou o Decreto 41.238, de 07 de maio de 2021, que regulamenta a implementação da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) – Lei Federal 13.709, de 14 de agosto de 2018 -, no âmbito do Poder Executivo Estadual e atende aos ditames desta legislação. A prefeitura municipal de João Pessoa (PMJP), com o objetivo de estabelecer diretrizes, definir normas, atribuir competências e deliberar sobre a política municipal específica para o assunto, tomou a iniciativa de criar o Comitê Gestor de Proteção de Dados Pessoais com base nos princípios e disposições contidas na Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e aos regulamentos complementares da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) no dia 28 de julho. Em um primeiro evento, no dia 30 de Agosto, foi realizado o Seminário sobre a Lei Geral (LGPD) para regulamentação do Plano de Ação do Comitê e, recentemente, no dia 6 de setembro, foi realizado um encontro entre representantes da Procuradoria Geral do Município de João Pessoa (Progem), Controladoria-Geral (CGM) e da Secretaria Executiva de Transparência Pública (Setramp) para discutir a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).
Iniciativas como essas são essenciais para garantir a fiscalização do uso de dados pela LGPD, em todas as suas esferas, num contexto cada vez mais distópico e próximo das realidades de “Gattaca” e “Black Mirror”, garantindo que os órgãos públicos e privados ajam de forma correta e eficiente. Espera-se assim que os impactos do uso de dados sejam amplamente discutidos entre os gestores e a população, permitindo que esta saiba, da forma mais abrangente possível, quais de seus dados são públicos, quem e como os usam. Afinal, é cada vez mais alto o preço da transparência de nossas vidas.
Ficam as dicas de filmes: “O Dilema das Redes” e “Coded Bias”, além do maravilhoso e clássico, “Gattaca” e da série (não tão) distópica, “Black Mirror”.