A primeira vez na vida que ouvi aquele grito, ainda criança, foi em 9 de julho de 1994. O Brasil enfrentava a Holanda pelas quartas de final da Copa do Mundo dos Estados Unidos. No papel, o time holandês parecia ser muito melhor que o nosso. O Brasil vinha de um jogo difícil contra os donos da casa e perdera seu lateral-esquerdo titular, expulso por lance violento. Naquela dura partida contra os holandeses, o time canarinho contava com o até então desacreditado Branco para a vaga de Leonardo.
O jogo estava em 2 a 2 e parecia não ter mais jeito quando justo ele, Branco, bateu a falta do meio da rua, Romário desviou como quem dança e a bola seguiu a trajetória para a qual havia sido destinada pelo divino, pois um gol daqueles não é desse mundo. Ao estufar a rede, o país inteiro se uniu em um grito.
Era grito dentro de casa, de mãe, pai, avó, irmã, gato e cachorro, mas também de vizinha, vizinho, de gente que passava no meio da rua e de quem nem estava tão perto. Este grito, único, preciso, inexplicável, era igualmente ininteligível. Não se ouvia “gol!”, ou coisa alguma. Era um urro vibrante de um Brasil que gritava em coro e se fazia ouvir.
De onde morava, num bairro da periferia de João Pessoa, ouvi minha irmã, que era fã de Leonardo e lamentava a ausência do seu jogador preferido em campo, gritar ao meu lado. Ouvi também gritos lá de Porto Alegre dos torcedores do Internacional, orgulhosos pelo jogador revelado no clube. Eram vozes que se somavam num efeito contagiante, de cidade em cidade, e chegavam em toda parte. Gritei junto, sem entender o tamanho daquilo ali. Sem mesmo acreditar que um dia ouviria um grito daqueles novamente.
Quatro dias depois ouvi o mesmo grito, que começou a ressoar antes mesmo de a bola entrar no gol, quando Romário pulou no meio dos grandalhões suecos e se fez gigante. Mais quatro dias e um grito semelhante, desta vez motivado por um italiano, Roberto Baggio, e um não-gol.
Não era um grito que acontecia em qualquer vitória da Seleção Brasileira. Depois daquela Copa de 1994, só voltei a ouvir o mesmo efeito em outra Copa, na final de 2002, duas vezes em um mesmo dia, com Ronaldo Fenômeno enterrando a fama de Oliver Kahn e a falácia de Fernando Henrique Cardoso sobre o goleiro supostamente imbatível.
Depois dali o grito virou memória. Não ouvia mais, mesmo em vitórias acachapantes. Esperei por ele na mais que perfeita defesa de Rogério Ceni contra a quase perfeita cobrança de Gerrard na final do Mundial de Clubes de 2005, quando o São Paulo venceu o Liverpool. Mas esse grito, único, unissonante, só acontece quando uma nação inteira está feliz. A minha felicidade, por maior que fosse, não bastava.
Depois de 2014, da tragédia do 7 a 1 e do descrédito com a Seleção, achava que nunca mais ouviria aquele grito. Ele ressurgiu na final da Libertadores de 2019, quando Gabigol colocou o River Plate no bolso e mudou a história da partida nos minutos finais. Entendi ali o real sentido de o Flamengo ser uma nação.
Seria então este grito motivado por torcidas em torno de partidas de futebol? Assim eu acreditava. Ledo engano. Este grito é êxtase coletivo motivado por qualquer motivo.
Na última terça-feira, perto da meia-noite, ouvi novamente o grito. Fui tomado pelo susto, pois não dava conta de jogo algum acontecendo, assim como pela alegria arrebatadora de todas as vozes que ali gritavam, como quem ri da risada do outro. Havia gente gritando da vizinhança, e também lá de Teresina, de Natal, Maceió, Aracaju e Campina Grande. Tinha grito de São Luís, Fortaleza, de Salvador e do Recife. Era jogo, mas não futebol. Meu país Nordeste gritava por Juliette.
Texto publicado originalmente na edição de 30 de abril de 2021 do jornal A União