Um homem sem máscara em um cenário de normalidade, em uma sociedade em que imperam os disfarces, as aparências, os subterfúgios, poderia ser um diferencial. Mas a ausência de máscara em um homem sem qualidades é apenas mais um defeito, principalmente em um cenário pandêmico. E aqui não trato de Ulrich, o (anti)herói do famoso livro de Robert Musil; falo de outro anti-herói que se orgulha de sê-lo ao enaltecer seus desfeitos, malfeitos e preconceitos.
Jair Messias Bolsonaro é o anti-herói militar que o Brasil elegeu, mas não merecia. Enquanto o país agoniza em uma pandemia que se arrasta há um ano, o antilíder político insiste em seguir na contramão do mundo, firme e forte no tipo outsider que forjou. Faz apologia a aglomerações, deslegitima a ciência e desconfia – ao menos publicamente – das vacinas. Mostra a sua total indiferença ao que se sabe sobre a covid-19 e ao que pode ser feito para minimizar o caos. Pior: revela o seu completo desprezo aos milhares de mortos no nosso país, afinal “não é coveiro”. Duzentos e sessenta e seis mil até hoje. Parece até que ele nos quer mortos. Aos montes.
Mas não se pode dizer que ninguém sabia. Embora tenha tentado se mostrar, durante a corrida presidencial, como um ponto fora da curva política (a despiste dos 27 anos em que esteve sentado na cadeira de deputado federal), o rei sempre esteve nu. Conservador nos costumes e liberal na economia, Bolsonaro não surpreendeu ninguém ao assumir a presidência e dar incontáveis passos rumo ao retrocesso em praticamente todos os seus ministérios. Sabe aquele padrão Fifa – sobretudo na saúde e na educação pública – pelo qual tantos brasileiros brigaram nas jornadas de junho de 2013? Pois bem, o então candidato nunca nos prometeu um mar de rosas.
Bolsonaro venceu, em meio a um contexto de desordem informacional e de um antipetismo pulsante, pelo viés do discurso anticorrupção e pró-militarização do país. Cumpriu o segundo com maestria. Além destes, a perseguição às minorias e a qualquer cidadão que pensasse diferente sempre foi uma bandeira de campanha, junto com o seu projeto de pátria armada Brasil. Tudo com o aval do seu séquito, a família tradicional brasileira que ora enquanto enterra sozinha seus mortos, sob a indiferença do ídolo-mor. Dali saem aqueles inabaláveis 30% de eleitores que, ainda assim, ameaçam prolongar a nossa permanência no inferno nas próximas eleições.
Mas o presidente não chora por eles. Choramos nós, homens e mulheres que enterramos pais, mães, avôs, avós, filhos e filhas, netos e netas, irmãos e irmãs, tios, primos, sobrinhos, amigos, colegas de trabalho, vizinhos, médicos, enfermeiros, professores, amores, vítimas de covid-19. Rostos conhecidos, nomes com tantas histórias resumidas a números frios. Gente que não abraçamos, que mal nos despedimos. Dores profundas tratadas pelo menor líder do mundo como mera frescura ou mimimi.
“Até quando vamos chorar”, senhor cidadão? Citando Tom Zé, devolvo a pergunta: “com quantas mortes no peito se faz a seriedade?”. E digo mais, agora a uma oposição em estado de letargia: com quantos litros de lágrimas se faz uma revolução?
P.S.: Neste 8 de março, honro todas as mulheres que partiram precocemente, vítimas de covid-19, e manifesto a minha solidariedade a todas que perderam alguém nesta pandemia.