Jornalista e doutoranda em Informação e Comunicação em Plataformas Digitais pela Universidade do Porto (PT). Autora do livro Flores nos Canteiros (A União, 2018). Interesse em temas sobre feminismo, viagens, comunicação e redes sociais. flavia.lopes.sn[a]gmail.com
Jornalista e doutoranda em Informação e Comunicação em Plataformas Digitais pela Universidade do Porto (PT). Autora do livro Flores nos Canteiros (A União, 2018). Interesse em temas sobre feminismo, viagens, comunicação e redes sociais. flavia.lopes.sn[a]gmail.com
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O mito de viver na Europa: saúde mental, pressão social e outras viagens
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(Foto: Flávia Lopes)

Faço terapia há três anos e não tenho perspectiva de alta. Nem tenho vergonha de assumir isso. Por muito tempo a terapia foi um tabu na sociedade e só quem fazia eram os loucos. Agora, fazemos para não ficar loucos. Eu mesma faço pelo bem da minha sanidade e para suportar viver em uma sociedade que nos julga e condena a todo instante, que nos oprime de tantas formas diferentes. Triste, mas é inevitável não sentir a amargura da ansiedade para alcançar o sucesso antes dos 30 e a pitada sem gosto de uma little depressão quando não se alcança a meta e começamos a comparar nossas vidas com os frames perfeitos de vidas alheias em redes sociais. Uma das minhas angústias de hoje em dia, por exemplo, é não ter bandeirinhas de diversos países na minha bio do Instagram. Coisa mínima? Óbvio! Mas são essas mínimas coisas, disfarçadas de meros detalhes, que abrem rombos para descobrir grandes traumas.

E para aproveitar o tema do Janeiro Branco vou falar de saúde mental e viagens. Não como uma viagem pode ser libertadora para te ajudar a aliviar as tensões, mas como a pressão para viajar e conhecer o mundo pode ser mais uma prisão e obrigação num check list de um jovem millennial angustiado para ser bem sucedido profissionalmente e socialmente.

“Mas você mora na Europa e ainda não conhece Paris?” Já escutei essa pergunta infame tantas vezes que os dedos da mão não bastam para contar. Quando tenho algum ânimo eu respondo “Pois é, querido! Difícil trabalhar, estudar e ainda ter que pagar de rica turistando na Europa com um tempo e um dinheiro que eu não tenho”. Quando eu tenho mais um tempinho, eu falo para a pessoa assim: “Senta aqui. Deixa eu te contar uma coisinha…”

E, tomando folêgo, encarno a boa geminiana que sou e começo a contar a história da minha vida: “Vim morar em Portugal porque passei para o doutorado, foi difícil encontrar trabalho no início, aceitei o primeiro sem carteira assinada para vender perfumes, tinha que dar conta de uma tese, aconteceu uma pandemia que todo mundo perdeu o emprego e esse era o menor dos problemas levando em conta o tanto de gente que morreu, chorei, de repente teve um surto coletivo mundial – além do coronavírus- que todo mundo fazia pão em casa e assistia live de artista, chorei, arranjei um emprego num supermercado, meu casamento entrou em colapso, me divorciei, chorei, perdi um carro, chorei também, arranjei emprego em uma empresa de limpeza, depois em uma fábrica, depois numa parafarmácia sem nem saber direito a diferença entre antinflamatório e analgésico, mudei de cidade, chorei, chorei muito, entrei na terapia e finalmente assinei uma carta de alforria dessa loucura toda quando passei numa bolsa de estudos e passei a me entender melhor”. Pasmem, mas essa história nem é tão incomum quanto pensam. Tantos imigrantes sofrem quando chegam por aqui, mas a maquiagem da rede social faz relativizar os sofrimentos simplesmente por morar na Europa!

Então, assim… moro na Europa, mas não sou europeia. Sou imigrante. E “as aves, que aqui gorjeiam, não gorjeiam como lá”. Passei por tudo isso sem ver minha família e só agora estou conseguindo respirar. Eu deveria ser mais caridosa comigo. Mas, mesmo assim, apesar de ter conquistado tanta coisa, sinto a pressão em cima de mim de conhecer o mundo, ou pelo menos mais alguns países da Europa. E penso: ”poxa, já moro aqui há tanto tempo e mal viajei! Ainda mais porque minha tese é sobre mulheres que viajam sozinhas. Quanta hipocrisia da minha parte!” White people problems? Sim. Perrengue chique, nem tanto.

Dái eu olho as bios do Instagram de alguns amigos, é tanta bandeirinha de outros países que dá vontade de perguntar se trabalham na ONU – e se por acaso poderiam me arranjar um trabalho por lá também. Iria feliz!

Isso já foi assunto de terapia tantas vezes. Sou filha única e carrego uma pressão grande nas minhas costas, um misto de “honrar os meus pais” com “não posso depender de ninguém, tenho que me virar sozinha” e “como assim ainda não cheguei no patamar de sucesso que eu queria aos 31 anos?” É… porque nos meus planos, aos 31 anos eu já teria um emprego estável, já era doutora, estaria em um casamento feliz e quem sabe ensaiando o primeiro filho, ou viajando o mundo. A realidade é que ainda sou estudante, bolsista, divorciada… ainda tô tentando botar em dia o projeto verão 2017, com medo de perder o prazo para ser mãe. O lado bom é que pelo menos to viajando, não o tanto quanto eu queria, nem o tanto que eu acho que seria ideal de acordo com os felizes padrões instagramáveis! Mas, pensando por outro lado, a minha trajetória até aqui levou-me a outra viagem. Uma bem mais importante…

Viajei para dentro de mim. E entendi que quando falo sobre viagem não é somente o deslocamento corporal de uma cidade para a outra. Minha viagem para Portugal foi antes de tudo um deslocamento do meu ser interior para outros lugares que existem dentro de mim também. Está certo que só conheço dois países europeus, Portugal (primeiro país que conheci fora o Brasil e que só vim por ter passado no doutorado) e Espanha (segundo país que conheci fora a terra tupiniquin que só conheci por intermédio de um estágio de investigação), mas no intervalo desses deslocamentos materiais, desloquei-me muito mais em viagens de autoconhecimento, muito auxiliado com o processo terapêutico.

Processo esse que me leva a refletir: qual o real sentindo das viagens? Viajamos para viver e trocar experiências, conhecer outras realidades, entender que o mundo não é apenas como a gente pensa, evoluir enquanto ser humano ou para alimentar uma rede social? Bem, se você trabalha com isso, os ditos “Nômades digitais” ou “influenciadores digitais”, ou se posta organicamente suas experiências em seus perfis, eu não tenho nada contra, até porque faço isso também. Mas aqui, a reflexão que propronho é outra. É entender por que sentimo-nos pressionados a conhecer o mundo se não conhecemos nem a nós mesmos?

Digo isso porque depois das minhas viagens interiores conheci muito mais de mim e passei então a entender melhor e mais empaticamente os outros, incluindo aqui pessoas, locais e situações fora do meu contexto habitual. A partir de um lugar seguro que construí dentro de mim, parti para um belíssimo encontro com a alteridade e com a solitude (a solidão do bem), o que me fez enxergar bem melhor quando me desloquei fisicamente para outros mundos.

Ainda lembro de uma significativa viagem que fiz a uma praia de Matosinhos, no distrito de Porto, em Portugal, minha primeira viagem sozinha, sozinha mesmo, em que fiquei admirando por horas as ondas do mar cercando umas rochas bonitas, enquanto comia um biscoito e imaginava o que havia nas profundidades marítimas que cercavam Portugal e em como o mar tinha um efeito glorioso de cura sobre o meu espírito. Refleti como a existência feminina está conectada à fluidez das águas em diversas culturas e como não era mero acaso a minha ligação aquática com a figura de Iemanjá ou Iara, e o meu desenho preferido ser a pequena sereia… O mar, naquele dia, lavou minha alma.

Em outra viagem, na minha primeira vez em Madrid, sozinha também, o que me encantou, por exemplo, não foram somente os fenomenais prédios, os parques verdes, a imponência real e formal da cidade, mas um semáforo em que a luz verde é a silhueta de uma mulher. Simbolicamente, para mim, ali estava registrado o passe livre para ser mulher, atravessar a rua e seguir a direção que eu queria. Tirei um foto, para registrar o momento material, mas o que ficou gravado de verdade não foi a reprodução fotográfica, foi o sentimento do momento.

Madrid e outras cidades espanholas ainda vão render muitas histórias por aqui, assim como Portugal e seus espetaculares lugares, pois foram palcos de vivências e passagens inesquecíveis. Apesar de só renderem duas bandeirinhas na bio (que eu nem coloquei), renderam incontáveis experiências afetivas, imaginárias, evolutivas, que não tenho como materializar em simples emojis.

Mas, todas essas viagens, tenho certeza, só renderam isso a partir de uma primeira viagem primordial: a que fiz para o interior que existe em mim.

Resumindo e finalizando de um forma não tão bonita como eu esperava: Fodam-se as banderinhas, as fotos no instagram, os stories de localidades. Façam terapia e se conheçam melhor. De nada vale viajar, conhecer o mundo e não se conhecer.

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