João Pessoa é a capital brasileira com mais leitores, segundo dados da 5ª edição do Retratos da Leitura no Brasil. A pesquisa, realizada no ano passado, revelou também que o Nordeste é a região que mais lê no país: das dez capitais brasileiras com melhores índices no levantamento anual realizado pelo Instituto Pró-Livro, cinco ficam no Nordeste.
O resultado é relevante não apenas para desfazer certos preconceitos de ordem cultural a respeito dos nordestinos, mas também para mostrar que a literatura não é – ou pelo menos não deveria ser – um privilégio dos maiores centros urbanos: notadamente o Sul e o Sudeste, onde ainda ficam as principais casas editorais deste nosso mercado literário ainda tão raquítico.
A literatura, seja ela ficcional ou não, nada mais é que a representação de uma realidade. Se há tantos leitores no Nordeste, isso é um sinal de que há também, aqui, indivíduos que anseiam por narrativas que os representem. Que se passem no Nordeste e que sejam escritas por alguém que conheça o Nordeste para além das suas praias no verão ou do sotaque da Suzana Vieira (atriz paulista), interpretando mulheres nordestinas nas novelas.
Estou falando de lugar de fala? Sim, estou. Você pode achar o assunto um saco, mas se você é um escritor que sente vergonha de colocar o nome de sua cidade num romance com receio de que isso torne sua literatura “menos universal” – simplesmente porque você leu pouquíssimas vezes o nome João Pessoa num romance contemporâneo vendido em livrarias e já introjetou o preconceito a esse ponto –, você vai entender o que estou falando.
E é triste que o próprio nome João Pessoa já carregue, nele, uma pecha tão controversa… Que os principais bairros da capital façam homenagens a notórios ditadores que em qualquer democracia séria deveriam ser considerados párias em vez de heróis. Mas não vou entrar nessa polêmica. A discussão aqui não é essa…
Lembro que, recentemente, numa crítica a um romance de Maria Valéria Rezende (paulista radicada há décadas em João Pessoa), defendeu-se que a escritora representava os nordestinos com uma certa indulgência, sendo condescendente com os dramas de um povo cujo retrato não correspondia exatamente àquele que ela fazia em sua ficção.
Valéria é dessas autoras que conseguem ir além dos clichês derivados do regionalismo pregresso (que, notem: ainda quando tratava da seca, como no caso de Graciliano Ramos ou Raquel de Queiroz, conseguiam enxergar um drama humano, por trás do biombo da tragédia social). Se a prosa deles é considerada regionalista, é porque o que é regionalista para quem escreve no Nordeste é “telúrico”, ou qualquer outro eufemismo poético que a crítica utiliza para grandes ficcionistas como Raduan Nassar, um perfeito regionalista se escrevesse naquela época, no Nordeste.
Eu, sinceramente, não consigo enxergar indulgência ou condescendência na ficção de Maria Valéria Rezende, simplesmente pelo fato de ela mostrar que o sertanejo, hoje, pilota motocicletas (geralmente sem capacete) em vez de jumentos… (E sim, estou aproveitando e agradecendo aqui a Kleber Mendonça Filho também). Posso não gostar do romance Outros Cantos como gosto do Vasto Mundo, por exemplo, mas não é por essa questão: ambos mostram um Sertão onde reconheço a minha terra natal Picuí (embora Picuí seja, vale lembrar, no Seridó).
Se o Sertão mítico onde ainda falta água, falta luz, e falta comida, divide, hoje, espaço com este Sertão que assistia à Sessão da Tarde depois da escola e tem seu smartphone com WhatsApp instalado, por que então, quando é este sertão que é colocado em perspectiva, nos apressamos tanto a julgá-lo como “condescendente”? Seria porque falta nele o pieguismo do “oxente”? A peixeira, o gibão e o chapéu de couro? Ficaria melhor se eu colocasse um cacto aqui? Uma criança com o bucho estufado de lombriga, lambendo o próprio catarro, acolá?
Sinto muito, mas o Nordeste não é a sua novela das oito. Ou o seu cinema que nem sei se é mais o gosto de Cannes…
Nesse episódio da crítica ao livro eu respirei fundo e me perguntei se eu não estava equivocado. Me questionei como poderia ser escrita uma ficção autêntica, que se passasse no Nordeste, ao gosto de quem lê o meu romance no Sul ou no Sudeste. Eu cometi a ousadia de perguntar isso, inclusive, já que a crítica não era a um livro meu (e prefiro divulgar críticas negativas ao meu livro a replicá-las…). A resposta veio com três referências curiosas: seria autêntica se fosse como os livros de Michel Laub, Alice Walker ou Coetzee.
Três escritores que li e que considero verdadeiros mestres.
Salvo o Laub, porém, nenhum dos três deve conhecer o Nordeste.
Este texto foi publicado originalmente no suplemento Correio das Artes
Tiago Germano é autor da coletânea de crônicas Demônios Domésticos (Le Chien, 2017), indicada ao Jabuti, e do romance A Mulher Faminta (Moinhos, 2018). É escritor e jornalista, com doutorado em escrita criativa pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e estágio na School of Drama and Creative Writing da Universidade de East Anglia, na Inglaterra, por onde passaram nomes como Kazuo Ishiguro e Ian McEwan. Nasceu em Picuí e mora atualmente em João Pessoa.