Quando a Covid ainda não ocupava todos os espaços midiáticos, era central outro tipo de morte nos noticiários. Aquela outra, bem mais seletiva, escolhia para si apenas gente pobre, carne negra, moradores de comunidades – comunhão dos mesmos riscos, da mesma pobreza, da mesma invisibilidade. As mortes, que não tinham nada de natural, eram simplificadas em duas palavras: “balas perdidas”. E justificadas numa curta frase: “Era usuário de droga”. O fato, conteúdo jornalístico por um dia, não demorava a ser substituído por outro, com idêntico personagem. Seriam eles personagens? Talvez nem coadjuvantes. Os pobres (leia-se: trabalhadores), embora fundamentais à sociedade capitalista, são por ela tratados como meros figurantes. Contraditoriamente, os sujeitos que produzem a riqueza, são condenados à pobreza pela sua própria criação. Em sendo assim, não faltam pobres nem para serem explorados, nem para morrerem. Afora os familiares mais próximos, pouca gente, às vezes nenhuma, pergunta quem são os responsáveis pela morte deles. E que ninguém se arrisque a responsabilizar a questão social. Os motivos são quase sempre atribuídos ao próprio indivíduo, embora alguns não tenham tido qualquer margem de escolha. Se ao uso da droga acrescentar-se ao currículo do morto uma temporada por um presídio qualquer, põe-se uma pá de cal sobre o assunto. Pronto. É só mais uma curta história de uma curta vida. Menos um na lista dessa gente que é um peso para o Estado. The end.
Por mais cruel que isso possa parecer, a população demonstra estar acostumada a esse tipo de morte. Tornou-se quase “normal”. Que horror! Digamos que as mortes referidas não eram tão concentradas. Atenção, o uso do verbo no passado não significa que acabaram. Podemos dizer que foram colocadas num plano secundário, para ceder o pódio aos mortos por Covid. Esta, ao contrário, não satisfaz a sua sanha assassina a conta-gotas. Peço desculpas, não estou subdimensionando a vida dos que morrem por “balas perdidas”. Não, absolutamente não. Trata-se apenas de distinguir, para melhor comparar. De unidades a dezenas, centenas, a Covid está a produzir milhares de mortos. Se amamos à vida, não há como aceitar tantas mortes, sobretudo quando chega a um nível, em que num só dia, num único país, morrem mais de 3.000 pessoas. Essas mortes bem mais diversificadas que aquelas. Não apenas pessoas idosas e pessoas com comorbidades, como fora previsto inicialmente. Note-se a forma sutil de simplificar as mortes, no primeiro semestre de 2020. Afinal, na sociedade de mercado, idosos e doentes são um peso. De cortinas fechadas, o Estado dava saltos de alegria. Bem vinda Covid, que reduziria o peso da previdência nas contas do Estado. Essa gente que não produz tem mesmo é que morrer. A Covid faria o serviço sujo e os governos fingiriam lamentar – nem isso no caso do presidente do Brasil. Mas não parou por ai. A Covid demonstrou-se camaleônica e expandiu a sua área de interesse. Em proporção menor que aquela população inicial, muitos jovens, sobretudo neste 2021, entraram nas filas dos atestados de óbitos.
Haveria algum aspecto comum aos dois tipos de mortes? Dir-se-ia, malgrado o descaso do Governo Federal, que as mortes por Covid têm merecido maior atenção que as mortes por “balas perdidas”. No universo político e científico, muitas autoridades estão a investir esforços para que o vírus seja enfrentado em condições menos adversas pela população. Enquanto as mortes por balas perdidas têm um público cativo, distante das classes média e alta, a Covid é uma ameaça próxima e que não dispensa carne branca. Em comum com a outra, o que chama atenção é o modo como um número significativo de pessoas reage a tantas mortes. Ou, talvez, a ausência de reação, a aparente falta de comoção pública. Seria só aparente? Os ouvidos moucos aos pedidos de quem está na linha de frente dessa guerra nos conduzem a pensar que essas pessoas desconhecem qualquer forma de solidariedade.
Haveria na morte um certo encantamento? Por que o propagado amor pela vida não move as pessoas na direção que geralmente declaram ter? O individualismo, a indiferença e o negacionismo que estamos enfrentando coloca em dúvida a centralidade da vida. Nem a morte da população jovem tem conseguido mudar o comportamento dessas pessoas que parecem apostar na imortalidade. Pensemos um pouco sobre a realidade. Embora o Estado se recuse a usar a palavra colapso, a realidade é que o sistema de saúde já colapsou. Há pessoas morrendo sem nem conseguir ocupar o leito de um hospital. Os profissionais da saúde ao mesmo tempo em que administram o baixo estoque de medicamentos, a falta de leitos e de equipamentos indispensáveis, a insuficiência de recursos humanos e o desespero das famílias enlutadas, também apelam ao bom senso da população “sadia”, no sentido de poderem exercer algum controle sobre a contaminação. A esses profissionais, todos exaustos e fragilizados, juntam-se as vozes da ciência, na tentativa de sensibilizar a população, enquanto não chega a vacina, tendo em vista mudar comportamentos, a meu ver, simples, se levarmos em conta o que significam para tornar menor o problema. Pede-se o uso de máscaras, práticas de higiene pessoal e que não se promovam aglomerações. Simples, não? A mim parece muito pouco, diante das condições que estão sendo enfrentadas dentro de hospitais lotados e diante do risco de morte que corremos todos. Para que não me taxem de piegas, nem vou falar da dor dos que estão a chorar seus mortos.
Convém ressaltar que as pessoas não são obrigadas a adotar as medidas sanitárias, são apenas chamadas a cooperar. Mas, enquanto uns se aliam ao que é defendido pela ciência, outros engrossam o negacionismo liderado pelo presidente da república. Ora, essa é uma luta cujos resultados depende do envolvimento de todos. A população está sendo convocada a exercitar sua dimensão coletiva. Será que o individualismo burguês ocupou todos os espaços da sensibilidade humana? Parece que nada resta de respeito ao próximo. Até o discurso cristão de “Deus acima de tudo”, slogan que identifica o governo negacionista e que é disseminado pelos seus seguidores foi, surprendentemente, substituído pelas determinações econômicas e reduzido a referências estatísticas. Alguns que nada sabem de economia posam de cientistas, apoiados em percentuais. Devia ser proibido o uso de porcentagens quando o objeto em questão é a vida. Consideremos que aquele 0,001% é o pai, o filho, a amante, o amigo de alguém. Assim, mesmo que você ache que as pessoas estão morrendo por outro motivo, mesmo que você ache que os dados estão sendo superestimados, os quase 300.000 brasileiros que aparecem nas estatísticas da Covid são reais. Frente a tantas mortes, o que nos pedem, convenhamos, é muito pouco. Aproveitemos essa oportunidade, para nos perguntarmos o que, de fato, somos capazes de fazer pela vida do outro.