Graduado em Letras e Direito e mestre em Organizações Aprendentes pela UFPB
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O rio e o sítio
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(Foto: Felipe Gesteira)

A casa encarava a tarde fechando suas janelas pela incandescência do sol. O portão do alpendre servia de fuga para quem quisesse mirar uma visão para além desse brilho incandescente. E desse alpendre, de uma cadeira de balanço, se via a rua que dava para os caminhos do rio Popocas e do sítio Catolé. Rua de barro batido. Em seu final, os caminhos eram diversos, seja para quem quisesse ir ao rio, seja para quem quisesse ir ao sítio. Eles eram sinuosos, e nem o rio e nem o sítio se pretendiam escondidos ou amostrados. Eles estavam por ali, entre muitos caminhos, veredas, trilhas, cercas, porteiras, atalhos e picadas antigas que davam no rio que vinha de antes da estrada de asfalto e que dava também no sítio que se perdia mata adentro. O rio e o sítio estavam no meio de tudo isso!

Lá, naquele fim de rua, sem calçada, sem meio-fio, sem nada, Joca de Padre não temia os vários itinerários e seguia sem maiores transtornos a trilha que se encaixava no embalo de seu corpo. Talvez porque já convivesse com todas as derivações dos caminhos que davam ao rio e ao sítio. Ele sabia que para chegar ao rio se descia uma ladeira longa, preguiçosa, quase imperceptível; em seguida, precisava encontrar passagens de terra firme, a fim de vencer o paul sem se atolar, conversava com animais de criação e se maravilhava com os ninhos de galinhas d’água. Descansadamente, caminhava para chegar à beira do rio e se dirigir às suas partes dedicadas ao banho de pessoas: mais acima, era reservado para o padre da cidade: rio do Padre; mais abaixo, para as mulheres que além do banho, brincavam e ariavam panelas: rio das Mulheres; e, mais abaixo ainda para os homens: rio dos Homens. Por isso que Joca de Padre ao descer a ladeira e deixar para trás o paul, já se dirigia à parte bem mais abaixo das correntezas para não importunar o padre e para respeitar as mulheres. Isso era um combinado com a Mãe D’água, a fim de que todos pudessem se banhar, nadar, pular das árvores ribeirinhas e dar flecheiro. Mãe D’água fazia a proteção de todas as suas estripulias, exceto mergulhar no poço, seu canto sagrado.

Ele também sabia que para chegar ao sítio se precisava caminhar mais tempo, abrir porteiras, passar mata-burros, pequenas matas, roçados, cruzar riachos e outros sítios para alcançar o Catolé de Baixo, porque o de Cima ainda tinha que subir uma ladeira impetuosa cheia de pé de jaca e de pé de laranja cravo, mas era um sítio só, quase uma terra grande, sem chegar a ser um latifúndio. Ao cruzar com algumas pessoas, saudava-as como sinal de boa vizinhança, uma espécie de diplomacia rural. Algumas árvores e restos de matas eram tidas como marcos divisórios, referências de localização e guarda de nascentes, eram os olhos d’agua. Isso tudo negociado com a Comadre Fulozinha para que a volta estivesse garantida. Aqui, o combinado era não tirar frutas verdes do pé, mesmo se estivesse com muita fome.

Seu Joca pouco titubeava. Guitarrista, de pouca renda, quase cego dos olhos, não usava óculos. Diziam que ele não era de paixões. Toda manhã, ele papeava na venda de Seu Araújo, na rua principal da cidade, não se esquecia da alegria e deixava que as vibrações de seu corpo dessem o tom à sua melodia. Conhecido pelas notas de sua serenidade, não se orgulhava de nada: nem de si, nem de filhos, nem de pai, nem de mãe, nem de sua guitarra, todavia era um orvalho. Era uma alegria só! Tal regozijo era tanto que dava raiva pela sua vontade de viver dedilhando cordas, balbuciando cantigas e contando histórias, muitas delas sem pé nem cabeça, dissonantes, loucas, sem sentido. Todas tecidas pelas vestimentas dos ciclos da vida. Todas falavam de todas as pessoas e de todas as coisas que lhes rodeava. Um motor sem tempo. Essa aceitação das pessoas e das coisas que faziam o seu mundo, talvez o tenha transformado numa invencionice. Ele se deixava encantar pelo sabiá das touceiras de bananeiras no seu quintal. Ou ficava à vontade para pedir ao vizinho os jenipapos caídos no chão do lado de lá de sua faxina.

Esse tocador de mundos conviveu com as sinuosidades das ribanceiras e com as trilhas das matas que se conectavam por riachos. O rio e o sítio se ligavam facilmente. E ele poderia chegar ao sítio pelo rio e ao rio pelo sítio, se envolvendo e se entregando, marcando seu ritmo, musicando. Muitas vezes não seguia o caminho dito. Esses ligamentos mudavam conforme o período de chuva ou sol; ou se era tempos de frutas ou não, exigindo rotas de fuga. Ele se arriscava a ficar perdido. Para ele, perder-se era uma brincadeira para se achar. Ele via o duvidoso forçando o presente a se lembrar do passado numa busca pelo futuro, bem lugar comum. Num vai e vem simultâneo, numa espiral elastecida de tempos. Ele enfrentava os tempos de olhos abertos como se enfrentasse uma guerrilha perdida.

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literatura