Há três dias que os meus neurônios me provocam destemperos que fazem rasgar velas em fiapos, ao mesmo tempo que me levam em calmaria que fazem as mesmas velas estampas esbranquiçadas caídas feito birutas sem ventos. Num e noutro momento não me atrevo a entender a vida. Mas me lembrei de tia Carminha que sonhava todo dia e contava seus sonhos como se dali saísse algum sentido para a vida ou para o bicho do dia. Dizia ela para o cambista: Seu Manoel, hoje eu não sonhei, qual o palpite de hoje? Seu Manoel respondia: Dona Carminha, toda noite a gente sonha, sonho sonhado e não lembrado é cabeça sufocada! É a gente se escondendo da gente mesmo! Sem querer aceitar a vida como uma cruz. O bicho, Dona Carminha, é avestruz! Então, seu Manoel, jogue dez cruzeiros: cinco no milhar e cinco na dezena. Tia Carminha me fez lembrar de meus sonhos! E fui dormir querendo sonhar e não esquecer nenhum detalhe do sonhado. E assim toda alvorada inicio abrindo bem devagar os olhos e começo a lembrar dos sonhos que me ajudam a jogar o bicho da vida.
Esse bicho manso e brabo que vai e vem feito maré. Que não se assujeita, procurando no espaço um tempo sem calendário e nas pessoas, pedras, plantas e coisas a desnecessidade de territórios de domínio. Os nós, mas que laços, das relações se intensificam em correntezas que nos levam para a boca das barras, mais como prisioneiros do que como nadadores. Mas o bicho insiste em nadar, nadar contra a correnteza é nadar contra a maré, já diziam isso: não nade contra a maré, meu filho! E o bicho cansa. Então se torna marginal, se encosta na ribanceira, resiste e se entulha num galho arrastado e volta a emprenhar as gramas que iniciam a mata desvirginada por roçadeiras. Aparentemente livre dos elos de água doce das correntezas, se vê no meio de uma mata quase morta, olha para um lado e para o outro, pra cima e pra frente, e em vez da boca da barra lhe consumindo num gole só, como numa lapada de cachaça, o que ele vê é a boca da mata desdentada e cheia de aparelhos por toda parte a arrancar-lhe seus dentes sem promessas de implantes ou mesmo dentaduras. O bicho ficou com medo de se perder na boca da mata desdentada. Mesmo assim, mergulhou mata adentro e chegou numa capoeira repleta de cajueiros. Ao pular nos galhos do pé de caju mais próximo, o estampido de um tiro de sal ardeu em sua pele e saltando de pé em pé, com um pedaço do pedúnculo à boca, correu sem saber pra onde. Não tem saída mesmo, vai viver cada dia esperando da noite o sonho do dia seguinte. E, no dia seguinte, seja quebrando as correntezas do rio; seja mordido por uma boca desdentada ou pulando de galho em galho, o bicho vai dormir e querer sonhar com o dia seguinte.