Depois de alguns dias de chuva, o sol bombardeia meu sábado. Chego na varanda do apartamento, apoio meus antebraços no parapeito da esquadria, cruzando-os! Separando-me do vazio do ar. Testemunho estilhaços de sol em direção ao mar, ao asfalto, às ruas, às casas, aos prédios, aos telhados, ao meu corpo. No meio de tudo, um cachorro desfila sobre os telhados!
Em movimento de noventa graus, viro o rosto! O restante do corpo se esforça para girar como uma grua em busca de um ângulo revelador! E me deparo com as plantas na varanda. Esqueço a ardência dos estilhaços explodidos em minha pele. E dedico meu olhar às plantas que fotossintizam minha memória.
De cara, o pé de Flor do Deserto, com seus caules como raízes às avessas, poucas folhas e três flores, chupa de mim risos de canto de boca, combinados com olhares de canto de olho, lembrando a mudez de Bianor, que era hábil em sua capacidade de cortar orelhas com pouco sangramento, que fazia estalar gritos de amputação! Ele cuidava da Flor do Deserto.
Logo acima, um pé de Espada de São Jorge atira seu olhar sobre o meu. Meus olhos de peixe morto são atravessados por um olhar miúdo, fulminante, de olhos nem azuis, nem pretos, nem castanhos. Era uma mistura de cores que fazia uma outra cor! Eram os olhos de Dona Carminha: religiosa, católica, misseira, dizimista. Ela dizia que o verdadeiro cristão não se apazigua, pois está condenado pelo pecado original. E assim cumpria sua vocação. Pecava todo dia, pelo menos, duas vezes: quando jogava no bicho e quando aguava a Espada de São Jorge. Catolicamente. E, por isso, tinha a Espada de São Jorge, seu santo protetor, na porta da sala, que lhe dava o seguro da fé. Como também fazia sua fezinha no jogo do bicho, ancorada na confiança do pule.
Mais ao lado, um pé de Comigo-Ninguém-Pode ostenta sua exuberância, sugerindo-se absoluto. Suas folhas vistosas, quase uma guloseima, me suga, também pelos olhos, a minha alma cheia. Sou tomado pela presença em toda vizinhança de um pezinho dessa planta num vaso, que ao virar um pé é colocado num jarro, que ao virar uma planta é transplantada para um canto no quintal, junto à cerca de varas amarradas por cipó, irrigada pelos restos d’água do girau. Aqui, meus olhos dão lugar aos ouvidos para escutar a voz de Dona Maria, afirmando agudamente como faca amolada: Meninos! essa planta é venenosa, não coma suas folhas! Se comer, a curiosidade não será satisfeita porque estará morto!
Olho mais à direita, um pé de Pinhão-Roxo, pequeno ainda, se sobressai e tira de mim a crença de Seu Beto. As folhas do pinhão-roxo murcham ao sinal de mau olhado. Ele está bonito mas pede para sair do aperto dos vasos da varanda. E se insinua para um jarro mais amplo e num local menos visto como a área de serviço. Ali, poderia crescer mais e suas folhas poderiam ser arrancadas para, fervidas, serem águas mornas para banhos antes de dormir. Seu Beto não dispensava uma reza regada a folhas do Pinhão-Roxo. E não abria mão de tê-lo por perto em seu jardim.
No canto da varanda, embaixo, o pé de Babosa amostra seus espinhos, querendo falar sobre dona Pequena. Ele diz que ela está na minha cabeça. As Babosas sempre foram plantadas no quintal, mas as que vejo agora estão em minha varanda em pequenos vasos. Carrega a fala de dona Pequena dizendo sobre seu valor curativo. Em torno dessa planta havia mais reflexão que fé. A Babosa não era nem mítica nem mística. Estava mais para um fármaco para além de suas bondades e maldades. Tanto curava quanto matava. Virou química fina.
Ao final da manhã, depois de arado pelo sol, fui ainda cortado por essas plantas que me tomaram o corpo inteiro como quem toma banho numa cachoeira. Esses pés todos cabem em mim. E fico embebido num cansaço meio triste, feito o minuto depois do êxtase drummondiano.