O Brasil com toda sua riqueza cultural é pródigo em expressões e gírias. Antes mesmo de aprender o português formal, o vocabulário de qualquer criança está recheado de frases que expressam o cotidiano e a cultura do brasileiro. Qual garoto ou garota não sabe o que significa quando alguém diz: o negócio vai esquentar pro seu lado. Todo mundo já deve ter ouvido: estou tão bonzinho com você hoje.
Qualquer tentativa de descaracterizar expressões que se aprende desde cedo, é uma evidente forma de distorcer significados que são parte do senso comum do brasileiro. Esse preâmbulo serve para chegarmos à frase usada pelo presidente, “pintou um clima”, em referência ao contato que teve com meninas venezuelanas de 14 e 15 anos.
O absurdo do relato tem raízes fortes. Não é novidade que Bolsonaro é machista declarado. O desrespeito pelas mulheres está expresso em toda sua vida como militar e político. Os exemplos vão de homenagens a torturadores, como Brilhante Ustra, que estuprou e espancou mulheres na ditadura; agressões a parlamentares, quando afirmou que a deputada federal Maria do Rosário (PT) não merecia ser estuprada por ser feia; até o extremo de afirmar que a única filha mulher foi decorrente de uma fraquejada.
A cultura de que as mulheres são pessoas de menor valor que homens está presente na humanidade, com destaque para países com alto nível de desigualdade e forte influência da moral religiosa. Por esse motivo, muitas práticas criminosas de Bolsonaro são aceitas por parcela significativa da sociedade, que entende os motivos no pecado original que é ser mulher.
A mulher é vista como inferior socialmente e toda conduta que de alguma forma fuja dos parâmetros estabelecidos pelos conservadores, será interpretada como uma porta aberta para violências e assédios, independentemente da idade e condição física. Adultas, crianças, deficientes físicas, dopadas numa cirurgia, hospitalizadas, recém-nascidas e até mortas estão passíveis de violações.
É com base nessa moral criminosa que Bolsonaro e sua legião de seguidores julgam a vítima e absolvem o criminoso. Nesse grupo, curiosamente, existem muitas mulheres que reforçam os preconceitos e se portam de forma ainda mais desumana que homens, a exemplo da própria primeira-dama, Michelle Bolsonaro.
Na hora que o presidente do Brasil relata que durante um passeio de moto em uma comunidade do Distrito Federal, foi observado por meninas de 14 anos e que retornou para manter contato, porque deduziu que “pintou um clima”, deixou claro até onde vai sua visão sobre a mulher. Assim como tantas outras expressões que aprendemos muito cedo, não existe qualquer dúvida sobre o significado da utilizada por Bolsonaro, muito menos do que implica à propagação dessa postura.
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O “pintou um clima” entre um homem de 66 anos e uma menina pobre, em situação de completa vulnerabilidade, na condição de refugiada, com apenas 14 anos de idade deveria ser mais que suficiente para o entendimento generalizado, que a conduta é criminosa, com o agravante que o criminoso é o presidente do Brasil.
Aqueles que entendem de outra forma não fazem isso por omissão, ignorância ou acharem que não existe qualquer intenção de cunho sexual na expressão utilizada por Bolsonaro. Isso fica mais que claro, quando ele continua e relata que ao entrar no local existia na verdade um grupo de meninas todas arrumadas e de maneira leviana, questiona: o que meninas de 14 e 15 anos fazem todas arrumadinhas num sábado?
O local referido por Bolsonaro era na verdade um projeto social, que naquele dia estava recebendo refugiadas venezuelanas para aprenderem noções de maquiagem e moda. Além da pedofilia explícita, o presidente insinua que existiria ali uma casa para promoção de prostituição. Dessa forma, ele como macho predador, foi na verdade vítima da promiscuidade juvenil, que assola o mundo pobre e representa um risco para o Brasil.
O episódio escancara toda cultura que o bolsonarismo representa. Os valores pervertidos de quem enxerga em meninas a possibilidade de conquistas sexuais. Os que corroboram com isso são aqueles que usam expressões também de fácil entendimento, como: “essas meninas de hoje não têm jeito”, ou “já começam desde cedo” e tantas outras que qualquer um sabe seus significados.
É essa cultura que Bolsonaro quer banalizar no Brasil, mas que sempre existiu, faltava apenas o que chamamos na comunicação de Discurso Autorizado. A pedofilia, o assédio, a violência sexual e o machismo são aceitos por muito mais gente na sociedade do que se imagina, homens e mulheres.
Pior ainda quando parte disso é prática do Estado. Quem não conhece relatos de mulheres constrangidas pela forma que são tratadas por policiais, enfermeiras, médicos, juízes, promotores e seus chefes no trabalho? Da mesma forma dentro de casa e por suas famílias.
O “pintou o clima” de Bolsonaro tem uma capacidade de síntese jamais vista. Porque da mesma forma que ele demonstra os seus valores, a moral que propaga, o preconceito e a forma doentia como enxerga até meninas, reflete também quem lhe absolve. São aqueles que compõem o rescaldo cultural que aceita esse tipo de conduta e contribui para que pedofilia, estupro e todo tipo de agressão seja passível de julgamento moral. São tão doentes, que desconsideram que a próxima vítima pode ser a mãe, a irmã, a esposa ou a filha.