Faz um tempo que não escrevo por aqui. Não houve um motivo especial. Pelo contrário: a profusão de assuntos, escândalos políticos, cortinas de fumaça, óbitos, lutos e lutas em tempos de pandemia, roubou a minha vontade de escrever. Há tanto a ser dito que eu mal sabia por onde começar. Esse excesso de informação contribui para um problema maior, a desordem informacional, que desorienta não apenas o nosso repertório, mas a nossa forma de ver e estar no mundo. O nosso próprio eu. Resolvi, então, retomar a minha escrita em torno dessa questão.
Há cerca de três anos cruzei com Derrick De Kerckhove em um congresso na Universidade Sapienza, em Roma. Tive a oportunidade de ouvir o filósofo belga, discípulo de Marshall McLuhan, e depois de entrevistá-lo para uma revista. Do tanto que ele disse, o que mais me marcou foi um conselho sobre como podemos lidar com o que ele chama de ditadura dos dados e da informação. “Conhece-te a ti mesmo”, disse ele, explicando que a liberdade hoje consiste em ganhar consciência para agir a partir das novas dimensões informativas ampliadas pelo virtual – que deixou de ser visto como um mundo à parte para estar em quase tudo o que habitamos.
Lembrei do seu conselho ao me deparar, esta semana, com dois trabalhos de fôlego, que no lugar de demonizarem a era da informação e das redes sociais digitais, nos ajudam a encontrar o nosso lugar por aqui.
O primeiro deles é o livro “O Grande Boato”, da jornalista pernambucana Alice de Souza, no qual a repórter mostra caminhos para criar uma cultura da verificação em tempos de desinformação. Tal percurso passa por nós, humanos, e pelos não humanos (programas, algoritmos, aplicativos, inteligência das máquinas em geral), capazes de nos auxiliar a identificar a veracidade das informações recebidas nas redes.
O livro nos lembra que boatos, mentiras, fofocas e outras maledicências se espraiam pelos quatro cantos da Terra desde que o mundo é mundo. Porém, não se pode negar que num contexto mais recente a desinformação encontrou um terreno fértil para se difundir mundo afora na velocidade de um clique.
De um lado, a tomada coletiva da palavra em redes como Facebook, YouTube, Twitter e Instagram, por minorias e cidadãos comuns, revela que qualquer usuário pode produzir conteúdo e compartilhar discursos. Do outro, a promessa de democratização da informação passou a conviver com as ameaças e tensões de uma atmosfera de pós-verdade, em que emoções e crenças pessoais valem mais que a razão, superando a confiança em instituições cada vez mais enfraquecidas.
A partir da sua experiência nas redações de jornais e nos laboratórios da indústria criativa, a autora de “O grande boato” mergulha profundamente na questão, sem a pretensão de oferecer fórmulas prontas para lidar com um problema tão complexo. Enquanto a verdade ainda não pode ser delegada a terceiros, a máquinas que possam dizer sozinhas se tal conteúdo é verdadeiro ou falso, a obra nos convida a construí-la em rede e nas redes, assumindo o nosso papel na formação de uma cultura da verificação. Isso só deve acontecer quando esse debate sair das salas de aula e das redações de jornais para ocupar de vez os espaços públicos e políticos, as instituições, os grupos da família no WhatsApp, as redes que compomos no nosso cotidiano.
Esses são os desafios de um tempo em que a verdade é constituída a posteriori, ou seja, ela se define depois, negociada nas redes em todas as suas versões, que podem partir de qualquer ponto, como bem definiu o sociólogo italiano Massimo Di Felice. “Nesse contexto torna-se impraticável a eleição de qualquer autoridade superior que possa editar ou, pior, decidir o que é verdadeiro e o que é falso”, afirma no texto “Nem verdadeiras nem falsas” (Revista E – Sesc, 2018). Na falta de uma instituição – jurídica, midiática etc. – que nos dite o que é verdade, no sentido autoritário da coisa, sobra alguma liberdade, ainda que acompanhada de um sentimento de desorientação, acrescento.
O segundo trabalho de fôlego sobre o tema que me chegou esta semana, trazendo algum acalanto em meio ao dilúvio de informações em que nos encontramos, foi a pesquisa de Geysianne Felipe Nascimento, intitulada “Resiliência informacional e desinformação no contexto do COVID-19”. Na dissertação, desenvolvida no Mestrado em Comunicação da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), a mestra analisa as práticas colaborativas de imigrantes brasileiras em Portugal, que em plataformas como Instagram e WhatsApp encontraram o acolhimento necessário para lidar com o estado de incerteza informacional, agravado por outras vulnerabilidades, em tempos de pandemia.
Conhecer um grupo de mulheres imigrantes que se unem para ajudar outras mulheres em condição semelhante – oferecendo serviços de informação, apoio em letramento digital, aconselhamento jurídico, suporte financeiro, tudo de forma gratuita – resgata a fé na potência colaborativa das redes em meio ao caos. E a Plataforma Geni é só um dos inúmeros movimentos de ativismo em rede que se dedicam à resiliência informacional. Sobretudo em tempos de pandemia, em que se espalham, no Brasil e no exterior, iniciativas de combate à desinformação, tradução de discursos (acadêmico, científico e econômico, sobre o vírus, as vacinas e todo o universo de dados pandêmicos) e, claro, de solidariedade.
Para encerrar o dilúvio de referências desta coluna, cito Pierre Lévy, que recentemente declarou em entrevista El País que “já éramos muitos maus antes da internet”. Na tentativa de colocar em xeque o tom apocalíptico que esse debate ganhou, mais uma vez, nos últimos tempos, o filósofo francês faltou destacar uma informação importante: nós também já éramos muito bons antes dela. Que isso nos ajude a reconectar.