Anderson Pires é formado em Comunicação Social – Jornalismo pela UFPB, publicitário e cozinheiro.
Anderson Pires é formado em Comunicação Social – Jornalismo pela UFPB, publicitário e cozinheiro.
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Tem hora que é preciso falar
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Foto: reprodução instagram, O Grito de Edvard Munch

Eu nasci em Maceió, morava num conjunto habitacional chamado Jardim das Acácias, no bairro do Farol. Coincidentemente, no mesmo lugar onde morava Djavan, que naquela época não era uma estrela, e a quem muitos se referiam como aquele neguinho que andava com um violão nas costas.

Pois é, era um lugar de gente pobre, num desses tantos conjuntos do antigo BNH, que se espalhavam pelo Brasil nos tempos da ditadura. Meu pai era jogador de futebol, vocês devem imaginar que não era grande coisa jogar no CSA ou no CRB na década de 70. Minha mãe assistente social, concursada do INPS, hoje INSS, e essa era nossa realidade. 

A geração dos meus pais cresceu com a perspectiva que a educação seria a melhor opção de ascensão social para quem nasceu tão pobre, como era o caso deles. Estudaram, cresceram intelectualmente, ambos se tornaram professores universitários e, certamente, tiveram um desfecho na vida muito melhor do que se esperava para alguém que nasceu numa casa que nem banheiro na parte de dentro tinha e os tijolos de barro eram sem reboco.

Nessa perspectiva, a receita de oferecer o melhor colégio, o curso de inglês e estudar música era uma aposta de que os filhos teriam uma vida muito melhor e com menos obstáculos do que os que precisaram enfrentar, por mais sacrifícios que fossem necessários. Mas a vida não é feita só de objetividades. Talvez, a parte subjetiva seja a mais determinante da nossa sanidade e do que costumamos chamar de felicidade.

Os nossos traumas primários passam por questões objetivas, mas com reflexos subjetivos que podem ser devastadores. Podemos até contê-los, mas, provavelmente, eles irão se manifestar uma hora, ao ponto de nos tirar do eixo e nos desconhecermos.

E quase tudo está lá na infância. Pai e mãe não significam necessariamente que sejam um casal, nem que serão o suporte que garantirá equilíbrio emocional para seus filhos. Casamentos se desfazem, pais erram e, na maioria das vezes, acreditam que estão fazendo a coisa certa.

As carências nem sempre são supridas de uma forma adequada. A alienação parental existe e é destrutiva. Porque obriga quem não consegue discernir nem a cor da roupa que irá usar, a se confrontar sobre o que é certo ou errado, em relação às duas pessoas que mais ama.

Isso não é um julgamento, é uma reflexão. Algo que nunca fiz antes, até porque sempre contive e guardei todas as questões que, possivelmente, foram determinantes para a forma como conduzi minha vida emocional. Sempre tentei usar da objetividade para ofuscar sentimentos, medos, culpas e traumas. Durante muito tempo funcionou, criei alguns anteparos, procedi conforme valores que tenho, mas não sou infalível, uma hora a bomba estoura e o que na infância era apenas uma circunstância imposta pela vida, estava latente à espera de que um conjunto de fatores se apresentasse e, assim, os piores demônios aparecessem.

Nesse balanço tem muita coisa que resgatamos e corremos o risco de praticar injustiças. Porque não é justo conosco nem com os envolvidos estabelecer culpas em relação a atos que não foram feitos em meio a consciência dos reflexos. Principalmente, quando aparentemente seriam os mais adequados para se promover o bem.

Não vou detalhar fatos, são muitos. A maioria estavam adormecidos. Alguns já foram até relatados em reuniões familiares ou de amigos como algo positivo, em que muitos riram ou acharam atitudes pertinentes, mas que não eram. O tal do engula o choro ou se apanhar na rua, apanha em casa, é parte desses equívocos comportamentais, que deixam sequelas.

Assim como, num mundo de tanta desigualdade, nem sempre aquele esforço inestimável para se colocar um filho no melhor colégio da cidade, um ambiente que pode segregar mais que acolher, seja algo saudável. Pode até contribuir para abrir alguns espaços na formação acadêmica e profissional, mas o custo emocional disso pode ser absurdo.

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Porque espaços coletivos são ambientes de segregação, determinados pelo grupo hegemônico. A busca pela aceitação pode ser dolorosa e as pessoas não devem ter como obrigação na vida se destacar para serem aceitas. Isso é cruel. Nesse pacote alguns se anulam, outros são cooptados e deixam de ser quem são. Tem ainda os que carregam traumas e até a consciência de que aqueles com quem convivia eram seus verdadeiros inimigos (muitas vezes de classe).

A primeira vez que me senti realmente incluído foi na universidade em João Pessoa. Um espaço que mesmo recheado de elitismo, tinha um caráter público e uma miscelânia que me fazia pleno, que me abria para uma série de possibilidades, que permitia que minhas utopias de adolescente baseadas no instinto, passassem a ter motivos coletivos. O que era um anseio individual, passou a ser uma causa. Isso foi libertador. Ser aceito pelo que se acredita, pelos valores, pelo ser, é um sentimento único.

Mas isso não significava que os traumas guardados não existissem. Além de culpas, carregamos dívidas. E isso pode nos atormentar e trazer a gente novamente para um campo nocivo, que nos desvia de quem somos, nos tira do espaço de sonho e nos joga na velha obrigação da ascensão e aceitação social, sempre vinculada a padrões, que até quem nos ama acha serem os melhores para se viver.

Às vezes nossos sonhos cabem numa camiseta branca e uma calça jeans velha. Mas isso não é considerado prosperidade. O que diabos você foi fazer numa universidade longe de onde nasceu, que investiu tanto, se não for para não sair com uma profissão que lhe dê sucesso profissional e financeiro?

Mas e os sonhos? Qual o valor que eles têm? É verdade que nem sempre eles são concretizados. Muitas pessoas podem ter um destino difícil na busca de suas utopias. Da mesma forma, que deixá-las de lado por conta das expectativas que geram em torno de você e os padrões de sucesso que a sociedade estabelece, pode ser muito pior.

O mais impressionante é que as cobranças e imposições começam muito cedo. Muitas vezes, quem cobra nem percebe que faz isso de uma maneira muito forte, mas travestida de algo banal e cheia de boas intenções. Lembra daquela história de não apanhar na rua? Vem desde lá. Se é para se meter numa briga, ganhe. E, assim, você será cobrado por tudo, ao ponto de a derrota, o abandono e a rejeição serem possibilidades inaceitáveis. 

Como ninguém só vence, entram os mecanismos de proteção. Seja a conversa fiada de que não gosto ou não me importo com algo, até criar versões que servem de proteção tão forte, que a pessoa passa a acreditar piamente que pensa daquela forma e, assim, está blindado desses sentimentos ruins que carrega ao longo da vida.

Como já disse antes, uma hora pode haver uma confluência que quebra com as verdades e mecanismos de proteção. Pior que isso pode lhe destruir. Pode afetar as pessoas que mais ama e descambar num processo de autoconhecimento e resgate tão dolorido, ao ponto de questionar o porquê de se ficar tão mal e a vida ser esse fardo.

O que tem de bom nisso? Se a trajetória for bem-sucedida pode ser a oportunidade de rever questões, de tratar feridas profundas, de mexer com situações que estabeleceram limites e mudanças de rotas na vida, que podem lhe custar muito emocionalmente. É também a hora de encarar dogmas que criamos, enxergar as pessoas que amamos com distanciamento. Perceber que amar não significa um salvo-conduto para só fazer o certo.

Somos vulneráveis e no instinto de defesa podemos cometer muitos erros, podemos machucar, podemos desrespeitar e, contraditoriamente, podemos fazer mal a nós mesmos. Porque na ânsia de controlar o que nos atormenta, podemos reagir a gatilhos de maneira destrutiva, com autossabotagem e boicote a nossa própria felicidade.

Aquele medo guardado, que sempre nos esquivamos de tratá-lo, nunca deixará de existir. Alguns com mais sorte passam a vida sem episódios que lhes obrigue a confrontá-lo. Mas isso é raro. O confronto pode acontecer nas mais diversas fases da vida e, tenha certeza, dói muito. Porém, é necessário.

Esteja preparado para quebrar certezas. Você terá raiva. Irá rever toda sua vida. Perceberá que seus ídolos não são infalíveis e que são capazes de na tentativa de acertar lhes deixarem marcas. Assim como, irá sentir muita culpa pelas vezes que não foi empático ou agiu de forma desrespeitosa com quem amava e machucou sem nenhuma razão, movido pela subjetividade cheia de pontos mal resolvidos e uma insegurança injustificável. E o pior, você pode corromper seus valores. Pode ser desumano com os mais próximos e se sentir um demagogo.

É uma trajetória bem complexa, que muitas vezes só nos damos conta da necessidade em momentos extremos. Às vezes é preciso um estopim para que as transformações existam e, se bem conduzidas, a vida pode ser outra, dentro de uma perspectiva de que verdades absolutas são imposições e que as variáveis que iremos nos confrontar são infinitas, logo, você nunca estará imune.

Porém, isso lhe faz crescer. Seja pela dor ou o amor, se estiver mesmo disposto, irá trazer à tona o que enterrou, mas que está vivo. Será a hora de limpar os cacos guardados que já não cabiam mais embaixo do tapete. Identificar motivos para atitudes que não concorda, algumas que até se envergonha e, assim, não repetir erros.

Outros erros virão. Nossa cabeça é cheia de caixinhas que podem ser abertas. Mas o processo já estará em curso. A forma que irá lidar com novos traumas será com mais equilíbrio, sem a tentativa de impor defesas e certezas. A ideia é sair melhor e reconhecer que nossos limites existem para serem tratados, sem atalhos e subterfúgios. Encarar nossos fantasmas é sempre difícil, mas precisamos exorcizá-los. Com certeza, é bem melhor que carregá-los por toda vida.

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