Pandemia. Novo coronavírus. Racismo. Tem sido difícil acompanhar o noticiário ultimamente sem se preocupar com os temas. Não bastasse um vírus ainda sem cura que ameaça vidas pelo mundo inteiro como uma catástrofe sobre a qual não temos controle, pois não há remédio com eficácia comprovada ou vacina, emerge nos Estados Unidos a necessária luta antirracista, que promete ganhar força.
No Brasil, além de todos os problemas que afetam outras nações e respingam aqui de forma inevitável, o país ainda precisa enfrentar os surtos de fascismo que surgem a partir de grupos ultraconservadores, insuflados por simpatizantes de um governo que flerta com o autoritarismo e acena para manifestações antidemocráticas.
Ante a ameaça à liberdade democrática conquistada após a ditadura militar, eis que a resposta não veio das instituições, do Poder Judiciário, da Suprema Corte ou do Congresso Nacional. Estas, que deveriam zelar pela tão jovem Constituição Federal de 1988, se limitam a emitir notas de repúdio. A ofensiva contra a semente do fascismo no Brasil veio da expressão cultural que mais mexe com a nossa identidade enquanto nação: o futebol. Não aquele gerido pelos cartolas, que protegidos em suas casas, discutem a volta do esporte mesmo sob crescente curva de contágio da covid-19 em todas as regiões. A resposta veio de quem verdadeiramente faz o futebol no Brasil: as torcidas.
Desde a eleição do presidente Jair Bolsonaro, tem crescido pelo país o número de alas antifascistas das torcidas organizadas. O princípio é similar: postura crítica dentro dos estádios, defesa por direitos humanos, princípios fundamentais e pela democracia. No último domingo de maio houve registro de conflitos das torcidas organizadas contra grupos que protestavam em defesa do governo federal e pediam ações antidemocráticas, como o fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal.
Em São Paulo, cidade onde o confronto aconteceu de forma mais intensa, em plena Avenida Paulista, a ofensiva contra os fascistas reuniu as alas antifas das torcidas de São Paulo, Santos e Palmeiras, e foi liderada pela torcida do Corinthians. É preciso ressaltar que no caso dos corinthianos, não foi um braço da torcida, e sim a Gaviões da Fiel, que enquanto instituição e de forma majoritária, assumiu a postura em defesa da democracia no Brasil e foi às ruas, mesmo sob os riscos da covid-19, enfrentar aqueles que de forma criminosa tentam derrubar o estado democrático de direito.
Não foi a primeira vez que a Gaviões se posicionou contra o governo do presidente Jair Bolsonaro e em defesa da democracia. Aliás, pesa na Gaviões a influência do movimento Democracia Corinthiana, e também do ídolo Sócrates, meia do clube que teve papel importante como voz ativa durante o processo de saída dos anos de chumbo para o período da redemocratização no país. Doutor Sócrates foi um ícone dentro de campo, vestindo as camisas do Corinthians e da Seleção Brasileira, e também fora dos gramados, na luta pelas Diretas Já.
No momento em que surgem representantes eleitos democraticamente saindo em defesa de uma ruptura social com a derrocada da democracia, como fez Eduardo Bolsonaro, filho do presidente da República, é de extrema importância que a sociedade se oponha em seus mais diversos segmentos. Além dos movimentos sociais, as torcidas deram um recado claro no último domingo: não estão para brincadeira e não aceitarão tão facilmente que os avanços sociais conquistados sob o sangue dos mortos e torturados pelo regime militar retrocedam. A Gaviões da Fiel foi gigante. Provou que o futebol, além de esporte, é paixão, religião, cultura e frente em defesa da cidadania.
Texto publicado na edição de 05.06.2020 do jornal A União