O presidente Jair Bolsonaro protagonizou mais um dos seus célebres exemplos de autoritarismo e desequilíbrio. Em mais uma de suas aparições, na porta do Palácio da Alvorada, quando perguntado por uma jornalista sobre algo que lhe desagradou, soltou um “Cala Boca”, no velho estilo Niltão, que a ditadura notabilizou.
Alguma novidade nisso? Para mim, absolutamente nenhuma. O fato só me faz lembrar a forma condescendente como alguns setores da imprensa sempre tratavam o nosso presidente, face aos absurdos que comumente distribuiu ao longo de sua vida pública. Essa permissividade, aliada ao poder da governança, explicam o autoritarismo que hoje rejeitam.
Em quase 30 anos ocupando mandatos, Bolsonaro protagonizou os mais diversos absurdos verbais, sem que recebesse a devida condenação pelos setores que hoje são agredidos por ele cotidianamente. Não lembro de nenhum grande veículo pedir a sua prisão por apologia à ditadura, ou por defender a tortura, muito menos pelas agressões que a Deputada Maria do Rosário sofreu, ou quando fez uma homenagem ao torturador da presidente Dilma, na votação a favor do Golpe que a afastou da presidência.
Bolsonaro é fruto da omissão. É produto da imprensa que patrocinou um julgamento prévio de Lula, baseado em suposições do juiz oficial de Bolsonaro – ex-ministro Sérgio Moro –, e também quando promoveu a farsa das pedaladas, como justificativa para a retirar do poder um partido que não lhe servia. Para isso, até relevar a ode a um torturador foi parte do roteiro. Desculpem se estou sendo injusto com as exceções, mas não me recordo de nenhum grande veículo que tenha dado a devida relevância ao absurdo que Bolsonaro cometera diante de milhões de espectadore dentro de uma casa legislativa que deveria representar a democracia.
Pelo contrário, Dilma foi condenada sem culpa e quem hoje manda jornalistas calar a boca passou ileso. Sobrou crueldade com quem não tinha culpa e, na mesma proporção, cumplicidade com quem sempre deu exemplos de total desrespeito ao ser humano, consequentemente à vida.
Hoje, quem clama por respeito aos direitos humanos e exalta a necessidade da liberdade de imprensa, são os mesmos que abriram mão dela, em torno de interesses menores e promoveram condenações com base em ilações e em uma carga de preconceito capazes de passar por cima de princípios. Certa vez, escutei Ciro Gomes, num vídeo, em um dos seus arroubos libertários, dizer para um grupo que o hostilizava na porta de casa, “eu estou defendendo você, seu bosta”. Pois é, a defesa de princípios não pode ser um instrumento de exceção. A lógica deve ser sempre do valor universal, mas não algo decorrente de um episódio que atinja uma categoria específica.
Maquiavel disse certa vez: “os preconceitos têm raízes mais fortes que os princípios”. Foram valores enraizados na sociedade brasileira que promoveram Bolsonaro à condição de figura mais importante do país. Daqueles que esperávamos a defesa de princípios, tivemos o silêncio de alguns e o apoio público de outros como resposta. Não foram poucos os que, vestindo camisas da CBF, exaltaram Bolsonaro e deixaram que os preconceitos os conduzissem a compactuar com todo tipo de injustiça, para que as suas raízes fossem contempladas.
Continuarei defendendo a liberdade de imprensa, seja para ser praticada por Kennedy Alencar ou por Alexandre Garcia. Isso é princípio. Assim como, também por princípio, não se pode conceber a imprensa e as empresas de comunicação como um poder imune, ao qual tudo é permitido, sem que existam limites. Não cabe aqui nenhuma evocação ao sagrado direito à difamação e manipulação midiática, os quais sempre escondem interesses particulares como justificativa para a liberdade irrestrita. Antes que alguém venha dizer que o controle da boa e má imprensa é social, feito pelo público, afirmo, sem medo de errar: isso é mais uma farsa. O controle é feito por quem detém os meios de produção e o Estado é omisso, à medida que, em lugar de pactuar com a liberdade, enquanto princípio universal, está sempre a garantir os interesses dos detentores da propriedade privada.
Com base nisso, alguns podem dizer: então, aqueles profissionais de imprensa que foram omissos ou coniventes com Bolsonaro estavam apenas a serviço de quem detém efetivamente o controle. Sim, em parte, isso é verdade, mas não serve de justificativa quando as reações coletivas não foram diferentes das manifestações individuais. Existem profissionais que são guiados pelos princípios, que quebram inclusive preconceitos que lhes foram impostos por toda vida, que se posicionam corajosamente em favor das suas convicções, mesmo desagradando o patrão. Mas qual foi a postura daqueles que representam a coletividade? Qual foi a postura das associações dos proprietários de empresas de comunicação? Por analogia, existem muitos advogados progressistas, mas qual foi a postura da OAB com relação ao golpe que foi o impeachment da presidente Dilma? Teve apoio oficial, com um entendimento casuísta. Felizmente, parece que retomaram o rumo da defesa da democracia e dos princípios do direito.
Após a queda do PT, quem mais cobrou autocrítica do partido foi a imprensa e as empresas de comunicação. Queriam um pedido de perdão em praça pública, com direito a linchamento, para que, assim, tivessem satisfeitos todos os seus prazeres inquisitórios. Vale ressaltar que um partido político só deve satisfação à parte da sociedade que se organiza em torno dele. Não é uma categoria que roga por liberdade em suas ações de forma indistinta. Está à mercê do mais legitimo efeito regulador, que é o voto. Essa é a forma de sanção ou veto àquilo que fizeram. Voto esse que ainda é a forma mais democrática de expressão que temos, mesmo levando em conta que está sujeito a influência de diversos fatores, inclusive do posicionamento da imprensa.
Em contrapartida, a imprensa prega a necessidade de uma liberdade, que é importantíssima na consolidação democrática, porém, precisa entender que valores devem ser sempre reafirmados e que só existe legitimidade se princípios não forem quebrados. Logo, a defesa da liberdade irrestrita ultrapassa os limites democráticos. Da mesma forma, nenhum poder pode ser absoluto, ao ponto de desrespeitar princípios e tratar o ser humano como passível de agressões conforme sua conveniência, sem que seja punido por isso. A quem a autocrítica pública deve ser uma premissa constante: aos partidos políticos ou à imprensa e aos meios de comunicação?
Não restam dúvidas de que Bolsonaro precisa ter uma reação à altura do seu autoritarismo. A imprensa é fundamental nessa resposta, mas precisa entender que isso deve ser um princípio, que servirá para quando um dos seus profissionais for atacado e, também, quando uma ex-presidente ou um cidadão desconhecido tiver a sua morte tratada com desdém. A permissividade espelha aquilo que realmente se é. Um democrata não pode ter postura seletiva; a imprensa atacada por Bolsonaro não é melhor que a que ficou calada quando ele exaltou a tortura durante toda sua trajetória. Isso vale para todas as categorias. Enquanto os posicionamentos forem guiados pela moral, a ética democrática continuará refém dos preconceitos.