Vale tudo para aumentar o engajamento de um político ou figura pública nas redes sociais digitais? Na minha opinião, não. Mas é isso o que defendem muitas assessorias, e para quem faz gestão de conteúdo com base nesse tipo de estratégia, vale até expor seu cliente a uma crise desnecessária.
A moda da vez é recriar uma imagem com base no estilo das animações do Studio Ghibli. Essa tendência conhecida como trend, quando milhares de usuários criam publicações em torno de um mesmo tema a fim de obter sucesso entre os seguidores, alcançou a obra do estúdio japonês a partir da última atualização do ChatGPT, plataforma de inteligência artificial (IA) da empresa OpenAI. Desde a terça-feira (25), assinantes da plataforma conseguem recriar imagens baseadas no traço do estúdio mundialmente famoso por obras do gênio Hayao Miyazaki.
Assim que a trend pega, assessores correm para inserir seus clientes na onda, inundando a rede com imagens de políticos, mesmo que desconectadas dos perfis. A verdade que eles não entregam aos clientes é que nem sempre os números pelo engajamento querem dizer que o resultado é positivo.
Entrar por entrar, por mais que renda alguns likes e comentários fofinhos, são apenas os próprios eleitores fiéis aplaudindo. Esse tipo de trend não agrega valor, tampouco projeta a imagem do trabalho desenvolvido pelo político em questão para um público maior. É ‘oba-oba’ em troca de absolutamente nada, somado ao risco de uma crise.
No caso de gerar imagens por meio de inteligência artificial, há uma discussão em torno de como essas ferramentas “aprendem” para que possam criar novas imagens. Mesmo que a nova obra não seja protegida por direitos autorais, a base de dados utilizada para o aprendizado é. A inteligência artificial então se apropria de um trabalho humano existente para poder criar algo novo. Outro custo da IA para além da ética ou respeito aos artistas é ambiental. Além do alto consumo de energia para treinamento e operação de modelos complexos, é necessário um grande dispêndio de água para resfriamento dos data centers.
Por ambos os motivos a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva (Rede), foi questionada ao aderir à trend. Ela prontamente removeu as publicações, pediu desculpas, fez uma retratação à altura do problema e ainda uma homenagem ao Studio Ghibli. Para quem viu crise, houve um trabalho de gerenciamento decente. O governador da Paraíba, João Azevêdo (PSB), nem aderiu, mas aproveitou o assunto para alfinetar quem entrou na onda e, em contraponto, publicou uma arte original do paraibano Shiko. “As IAs até que são legais, mas ainda prefiro o traço autêntico dos nossos artistas”, publicou.
Muitos políticos e celebridades deram de ombros às possíveis críticas. Mas o pior são aqueles que sequer sabem do que se trata a origem da trend, nunca assistiram a nenhuma das obras e entraram só como bois numa manada. Nem mesmo a referência ao Studio Ghibli fizeram, no máximo uma menção de que viraram “anime”. Houve também quem tentasse apenas apagar a postagem para fugir das críticas, caso do escritor Itamar Vieira Junior, que foi duramente questionado por seus seguidores. Apagou e não publicou um pedido de desculpas até aqui. O print, no entanto, é eterno.
Ressalto que a questão não é apontar o dedo para um usuário que é fã do Studio Ghibli e decidiu recriar uma imagem com base na foto da família. Não sou fiscal de comportamento. Estamos falando de personalidades públicas. Para figuras da política, independentemente de trend, moda ou tendência, vale mais uma estratégia que divulgue o perfil político e sua atuação de forma verdadeira do que qualquer onda em busca de likes. O trabalho a longo prazo e bem planejado garante resultados mais consistentes.
Há bem pouco tempo uma trend semelhante criava imagens com base no estilo do estúdio Pixar. À época também houve críticas sobre todos os problemas aqui já citados, mas por que o rebuliço com o Studio Ghibli foi tão maior?
Em primeiro lugar, as discussões sobre inteligência artificial, uso de base de dados como apropriação para aprendizado e direito autoral têm evoluído. Ao mesmo tempo, a problemática do custo ambiental vem sendo abordada com mais ênfase.
Outro ponto está no perfil do Studio Ghibli. Muitas das obras consagradas foram feitas à mão. O próprio Hayao Miyazaki já havia concedido entrevista sobre o tema e afirmou que esse tipo de criação automatizada soa para ele como um “insulto”. Assim, utilizar as ferramentas de IA para recriar com base no estilo do Studio Ghibli teve para os fãs um tom deveras ultrajante.
Sou fã da obra de Miyazaki desde que assisti pela primeira vez a Princesa Mononoke (1997). Está certamente entre meus três preferidos, empatado no topo com Nausicaä do Vale do Vento (1984). E não que a trend trazer visibilidade às obras do Studio Ghibli seja um mal que tenha vindo para o bem, como muitos usuários tentaram justificar nas redes o impacto às artes e ao meio ambiente, mas já que estamos aqui falando do assunto, vamos lá.
Os filmes do Studio Ghibli têm majoritariamente mulheres como protagonistas. Não princesas, mas guerreiras, lutadoras, caçadoras, praticantes de magia. E assim são desde sempre, diferentemente da Disney, que promoveu um reposicionamento [de Cinderella até Moana há um longo caminho percorrido]. Além da abordagem de gênero, os filmes tratam as questões ambientais como imprescindíveis à sobrevivência humana, e utilizam panos de fundo belíssimos, com abstrações e sutilezas marcantes e um estilo próprio que vai muito além do traço.
Vale a pena sim conhecer. Vale muito!