Marina Magalhães é jornalista, professora e pesquisadora. Doutora em Ciências da Comunicação (Universidade Nova de Lisboa), mestre em Comunicação e Culturas Midiáticas e bacharel em Comunicação Social (Universidade Federal da Paraíba). Instagram: @marinamagalhaes_m
Marina Magalhães é jornalista, professora e pesquisadora. Doutora em Ciências da Comunicação (Universidade Nova de Lisboa), mestre em Comunicação e Culturas Midiáticas e bacharel em Comunicação Social (Universidade Federal da Paraíba). Instagram: @marinamagalhaes_m
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Vetor ou vacina?
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Dois mil e vinte e um começou com a esperança de vacina contra o coronavírus nos braços de gente comum, como nós, espalhada pelo mundo. E com a promessa do Dia D e da Hora H para a vacinação no Brasil, a despiste de todos os esforços dos nossos cientistas empenhados há meses na produção local da CoronaVac. Com um pouco de sorte e de boa vontade do governo federal (algo mais difícil que a própria vacina), quem sabe esse dia chegue ainda este ano.

Para mim, 2021 começou também com um teste positivo para a Covid-19, de novo. Reinfecção. Em março eu já havia desembarcado por aqui com alguns sintomas. Não sabiam o que fazer comigo, um dos primeiros casos sintomáticos locais. No fundo, parecem continuar a não saber o que fazer com os doentes. Da primeira vez, foi Covid mesmo? Se não há sintomas, quando começo a contar a infecção? Quando é melhor fazer o teste? Até quando eu posso transmitir? Posso ter contaminado a minha mãe?

Se viver, por si só, é um mistério, em tempos de pandemia tem se tornado um caos. Não consigo encontrar termo melhor para descrever, mesmo com todos os privilégios que me cercam. Em qualquer pandemia somos todos uma arma em potencial, vítimas e ao mesmo tempo vetores. Pelo menos é assim que me sinto durante o meu quinto isolamento social total (entre suspeitas e confirmações de infecção).

Em meio à segunda onda pessoal de coronavírus, recebo o convite para voltar a escrever. Jornalisticamente falando. Deixar de lado a escrita acadêmica, em terceira pessoa, amparada pelas normas da ABNT, pelos livros e autores citados, pela racionalidade da ciência. Escrever, em primeira pessoa, de forma intuitiva, dentro do site Termômetro da Política, para um público que desconheço. Escrever a partir do que vem de mim, da minha relação com o mundo. De início, aceitei. Depois, gelei. Desde quando escrever simples se tornou tão complicado?

Escrevi ao editor, o meu amigo de longas datas Felipe Gesteira, para agradecer o convite e explicar que política não era o meu forte. Que estava muito afastada dos bastidores da política local, tema que no fundo nunca me interessou tanto assim. Mas ele resgatou o conceito amplo do que se entende por política e lançou a máxima de que tudo é política. O corpo, a sexualidade, o gênero, as relações interpessoais, a linguagem, a educação, a saúde, a ciência, a arte… de um modo ou de outro, tudo acaba fazendo parte do jogo. Tenho outra tese, mas não posso dizer que discordei.

O passo seguinte foi definir o nome da coluna. Só tinha uma regra: máximo três palavras. Dia a dia, Mundo em Pauta, Cotidiano. Achei óbvios demais. Lembrei então de Por Pauta Abaixo, nome de um blog que criei há cerca de quinze anos. Um blog que eu pouco divulgava, achava até que fosse meio invisível, na ingenuidade dos primórdios da blogosfera. Um espaço criado para o exercício do pensar, nos tempos da redação, quando eu cumpria as pautas do dia e podia, enfim, escrever sobre aquilo que de fato me interessava. Sonhos, desejos, traumas, fantasias, histórias minhas, histórias dos outros, histórias do mundo, estórias. Realidade e ficção.

Por Pauta Abaixo durou alguns anos e tinha meia dúzia de leitores, com os quais eu interagia raras vezes, mas sempre de forma profunda. Os textos me renderam, inclusive, um convite para trabalhar como jornalista em uma revista brasileira produzida na Espanha, anos depois. Passei um tempo sem escrever no blog, imersa em um novo continente e nas experiências que se descortinavam naqueles cenários. Era tudo tão sedutor que mal tinha tempo de parar, pensar e escrever. Quase me esqueci da sua existência.

Até que alguém descobriu o meu blog. Leu tudo, numa tacada só: mais de 200 textos. A caixa de Pandora foi aberta por quem levou tudo ao pé da letra. Sonhos, desejos, traumas, fantasias, histórias minhas, histórias dos outros, histórias do mundo, estórias. Realidade e ficção. Era como se tudo fosse biográfico, como se tudo aquilo fosse meu. Independente disso, eram só palavras. Não deveriam fazer mal a ninguém. Mas em relações abusivas, a vítima se sente culpada. Não importa quantos diplomas tenha, a educação de casa, a condição social, a experiência de vida… basta uma fresta que seja, nesse mundo machista, para uma mulher ser culpada até pelas chagas de Cristo.

Foi assim em 2012, quando resolvi tirar o meu blog do ar e colocá-lo em quarentena eterna. Simone de Beauvoir deve ter se revirado no túmulo. Mas, se o poetinha Vinícius de Moraes tinha alguma razão, que mulher “foi feita apenas para amar e para ser só perdão”, que comecemos pelo amor-próprio e pelo autoperdão. Eu já me perdoei, apesar de nunca mais ter voltado a escrever sobre mim ou em primeira pessoa. Por vergonha, por covardia, por achar pouco importante, por não querer me expor. Nos últimos anos voltei todos os meus esforços para a escrita acadêmica, escondida entre outros autores e normas de formatação. Produzi como uma máquina, ao custo de quase perder a poesia no caminho.

Resolvi voltar a esse tema oito anos depois, no meio de uma pandemia, da minha segunda onda de infecção e da quarta onda do feminismo, não apenas para justificar o nome da coluna. Resgatar Por Pauta Abaixo é mostrar que a escrita também é um ato político. Em um cenário de um machismo estrutural latente, em um país em que uma mulher morre vítima de violência a cada duas horas, emprestar a minha voz para contar histórias – minhas ou de outras mulheres – é também uma forma de fazer política. É mostrar que escrever também pode ser um meio de despertar. Cada um encontra o seu caminho para a iluminação.

Que em 2021 cada vez mais vozes femininas – plurais, roucas, novas, cansadas, estridentes, histéricas, afinadas ou não – rompam o silêncio dos bons contra o vírus do machismo, do preconceito, das desigualdades, de tantos problemas sociais que terão lugar nessa coluna. Que Por Pauta Abaixo seja um laboratório para o exercício coletivo do pensar. Em um mundo que nos faz sentir vetores, sejamos vacinas!

P.S.: Dedico esse regresso a Lorena Portela (@portelori), autora de “Primeiro eu tive que morrer”, livro que me inspirou a voltar a escrever.

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