Jornalista e doutoranda em Informação e Comunicação em Plataformas Digitais pela Universidade do Porto (PT). Autora do livro Flores nos Canteiros (A União, 2018). Interesse em temas sobre feminismo, viagens, comunicação e redes sociais. flavia.lopes.sn[a]gmail.com
Jornalista e doutoranda em Informação e Comunicação em Plataformas Digitais pela Universidade do Porto (PT). Autora do livro Flores nos Canteiros (A União, 2018). Interesse em temas sobre feminismo, viagens, comunicação e redes sociais. flavia.lopes.sn[a]gmail.com
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Viajar sozinha é direito, é dever!
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(Foto: Flávia Lopes)

Talvez eu tenha nascido com uma síndrome de solitude. Gosto de fazer muitas coisas sozinhas. Ir ao cinema, ir a um restaurante, caminhar e viajar. Sempre gostei muito de estar comigo mesma e acho até estranho quem não consegue ficar só. Mas, essa solidão sempre veio acompanhada de umas questões: “porque eu gosto de ficar sozinha?”. Minha mãe às vezes ficava me perguntando se eu estava triste. Mas não. Só era natural me divertir só já que aprendi desde criança a brincar muitas horas sozinha. Eis a dor e o sabor de nascer e crescer filho único. 

No entanto, essa independência não é um comportamento tão bem aceito na sociedade. Ainda mais quando se é mulher. Atualmente desenvolvo uma pesquisa que fala sobre mulheres que viajam sozinhas e como representam Portugal em suas narrativas digitais. Passo horas analisando a liberdade de trânsito dessas mulheres e como elas se expressam livremente pelo mundo, pelas suas viagens. É catártico ler sobre suas aventuras, ver essa liberdade do corpo, de ir e vir, e ler sobre essas experiências.

Muitas vezes me questionei se esse era um tema importante para dedicar tantas horas (na verdade anos de estudo). Ainda fico me perguntando qual a minha contribuição para a sociedade: “qual vai ser o meu legado com esse estudo?”. 

Ainda não sei responder, mas nesse mês de Janeiro uma notícia me chocou: a morte de Julieta Hernández, artista venezuelana que viajava de bicicleta sozinha pelo Brasil, e que foi estuprada e assassinada. Em dor e sentindo muita tristeza, pensei: talvez seja sim importante falar sobre mulheres que viajam sozinhas. Talvez seja sim importante falar que temos o direito de transitar e que, se somos mortas, não é por nossa culpa, mas sim pela sociedade degenerada que vivemos. E sim, importa defender o livre corpo feminino que viaja como resistência às amarras de uma sociedade patriarcal que nos prende em esferas domésticas. Ainda. Mesmo depois de tantos anos. 

O mundo resguarda para nós a passividade de Penélope que espera Ulisses, do que uma Odisseia própria. Enquanto para o homem era reservada a glória da aventura, à mulher que se propunha a viajar era relegado o lugar de subversão. Mas, em contraponto disso, defendo uma inversão desse substrato cristalizado de preconceito que nos aprisiona em um imaginário social que diz que mulher não pode – nem deve – viajar só. Vou citar alguns exemplos de mulheres que marcaram a história das viagens internacionais, negando às esferas privadas que as circundavam, desafiando as leis patriarcais, desde o tempo da antiguidade. 

Façamos memória então a Egeia, a quem devemos o protagonismo de primeira mulher viajante que documentou sua jornada. A abadessa Egeria (ou Etheria), uma cidadã romana que trilhou uma jornada a Jerusalém por volta de 383 D.C (Birkett, 1991 apud Wilson e Harris, 2006), no século IV, partindo da região a qual hoje conhecemos como Galícia (Serrano, 2017), com os seus escritos colaborou não só para os estudos sobre a língua Latim, a qual pode ser lida em sua versão mais informal, quanto também para a compreensão da liturgia cristã praticada em Jerusalém, “comparando-a com a do Ocidente hispânico, numa altura em que se começa a estabelecer definitivamente o conjunto de memórias e datas religiosas do cristianismo, como Domingo de Glória ou o Natal” (Serrano, 2017, p. 99). 

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Nas sombras da Idade Média, algumas mulheres também conseguiram deixar seus nomes na história, como Alwilda, a princesa nórdica pirata; Leonor de Aquitânia (1122-1204), rainha consorte de França e depois de Inglaterra, que participou da segunda cruzada (1147-49) desafiando os preceitos da época (Serrano, 2017, p.102); a princesa Ingrid da Suécia que peregrinou em 1270, a pé, a Santiago, Jerusalém e Roma (Serrano, 2017, p. 102);  

Na Modernidade podemos citar também outros nomes femininos pouco conhecidos mas que deixaram suas marcas. Dentre elas Mencia de Calderón (1514-?), que partiu para América do Sul para assumir o posto do marido morto, pouco tempo depois de ter se tornado governador do Rio da Prata e do Paraguai por Carlos I. (Serrando, 2017) e Catalina de Erauso (1585?- 1652), famosa por suas peripécias e biografia romanceada. Ela mesma deixou os relatos de suas aventuras no livro “História da Freira Alferes Escrita por Ela Mesma” (Serrano, 2017). Em sua obra conta que fugiu do convento, travestiu-se de homem, assumiu o nome de Francisco de Loyola, e a partir daí se envolve em diversas desventuras, em que se listam batalhas, prisões, fugas e tantas outras. Sua história escreve-se entre partidas e chegadas a muitos lugares, sempre fugindo de quem conhece sua verdadeira identidade, e um dos destinos é a América. Da Espanha parte para Sevilha, de lá para o Panamá, depois para o Peru, Chile e tantos outros destinos difíceis de listar em poucas linhas.

Há ainda nomes como Lady Mary Wortley Montagu (1689-1762); Lady Hester Lucy Stanhope (1776-1839), Jane Dieulafoy (1851- 1916) que ajudaram a conhecer o mundo oriental com suas pesquisas e expedições em lugares ainda não conhecidos pelo Ocidente. Jane Dieulafoy, aliás, foi uma das pioneiras a trajar roupas masculinas em suas peregrinações arqueológicas. 

Aos nomes de todas essas mulheres, pioneiras e que tiveram a missão de carregar o estigma do desbravamento, enfrentando preconceito e lutando pelo livre poder de trânsito, eu somo a tantas outras mulheres que deixaram seus registros de viagens e que serviram como inspiração. Mesmo que esquecidas e injustiçadas, de certa forma, pela grande história, elas existiram e é em nome de seu legado que afirmo: a viagem feminina é uma forma de expressar o alienável e inquestionável direito de ir e vir. 

Quando uma de nós morre no meio desse caminho você não deve se perguntar o que estava a fazer uma mulher a viajar só, mas sim o que deu errado na sociedade para punir tão violentamente alguém que só estava exercendo seu livre direito de transitar pelo mundo. O direito de ir e vir deveria ser inalienável. E independente de sexo. Nesse contexto, entendo que viajar sozinha é também um dever, um dever de exercer a minha liberdade e dizer ao mundo que eu o pertenço e que por isso transito por entre ele. Viajar sozinha agora, mais do que nunca, virou para mim um ato de resistência, em nome de todas as mulheres que lutaram pela nossa liberdade ao longo de toda a história da humanidade.

À Julieta Hernándes, artista venezuelana assassinada no Amazonas, eu deixo o meu pesar pela sua morte e um sincero lamento de dor, porque com ela todas nós morremos um pouco. Mas, vive nessa dor uma esperança de lutar e de entender que ainda não é tarde para resistir ao que nos dizem que não podemos fazer. Não deixemos o medo da violência nos paralisar, porque assim matamos não só Julieta novamente, mas todas as mulheres que um dia lutaram para poder existir e resistir. 

Abaixo deixo algumas referências que utilizei para escrever esse texto e sugestões de leituras:

Serrano, S. (2019). Mulheres viajantes. Tinta da China.

Wilson, E., & Harris, C. (2006). Meaningful travel: Women, independent travel and the search for self and meaning. Tourism, 54(2), pp.161–172.

Winet, K. K. (2015). Toward a Feminist Travel Perspective: Re-thinking Tourism, Digital Media, and the” Gaze”.

Bosangit, C., Hibbert, S., & McCabe, S. (2015). “If I was going to die I should at least be having fun”: Travel blogs, meaning and tourist experience. Annals of Tourism Research, 55, 1-14.

Carvalho, G., Baptista, M. M., & Costa, C. (2015). Mulheres que viajam sozinhas: reflexões sobre género e experiências turísticas. Revista Turismo & Desenvolvimento, (23), 59-67.

Coutinho, R. S. (2009). Mulheres Aventureiras: Portuguesas espalhadas pelos quatro cantos do mundo. A Esfera dos Livros, Lisboa. 

García, C. C. (2012). Rainhas piratas e outras senhoras do mar. In Más igualdad, redes para la igualdad: Congreso Internacional de la Asociación Universitaria de Estudios de las Mujeres (AUDEM)(2012), p 301-310. Alciber.

Lifchitz Moreira Leite, M. (2015). Mulheres viajantes no século XIX. Cadernos Pagu, (15), 129-143. Recuperado de  https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/8635570

Pereira, A., & Silva, C. (2018). Women solo travellers: motivations and experiences. Millenium, (6), 99-106.

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