Meses atrás, minha amiga Tarcilla me indicou uma psicanalista que mostra como a literatura ficcional pode ilustrar algumas teorias feministas: toda a ideia por trás de A mística feminina, por exemplo, está bem representada no romance A vida invisível de Eurídice Gusmão, de Martha Batalha. Achei o contraponto genial. Se, para muita gente, ler teoria é enfadonho, a literatura, por outro lado, na maior parte do tempo atua como uma espécie de lazer, de dedicação a horinhas de ócio e de descuido. Mas, como diz Barthes, a literatura também reflete todos os saberes, ela contém tudo. Imagine internalizar discussões sobre a condição das mulheres a partir de um romance.
Em 1929, Virginia Woolf publica Um teto todo seu, um breve ensaio no qual argumenta, e eu concordo muitíssimo, que nós, mulheres, não precisamos de muita coisa: basta um teto, um espaço só nosso, com tempo livre, para que possamos desenvolver nossas capacidades, cultivar nossa imaginação, pôr em prática nossa criatividade, nos utilizar de nossos talentos, enfim. Porém, assoberbadas como somos pelo trabalho doméstico, pelo cuidado com filhos e familiares, pelo trabalho fora, nos resta pouco tempo para nos dedicarmos a tais atividades, nas quais os homens se empenham há séculos.
Woolf teoriza que, se Shakespeare tivesse tido uma irmã tão genial quanto ele, jamais poderia ter escrito Hamlet, Macbeth ou Otelo: faltaria-lhe tempo, instrução, motivação. “[sua talentosa e extraordinária irmã] era tão aventureira, tão imaginativa, tão impaciente para conhecer o mundo quanto ele”, diz Woolf, mas ela “não teve a oportunidade de aprender gramática e lógica, que dirá de ler Horácio e Virgílio. Apanhava um livro de vez em quando, talvez um dos de seu irmão. (…) Mas logo seus pais surgiam e ordenavam que fosse coser as meias ou cozer o guisado e não mexesse em livros e papéis”.
Obviamente, o ensaio de Woolf, escrito há quase um século, não reflete mais com tanto rigor a realidade feminina: nós, mulheres, temos acesso à educação, seguimos carreiras outrora consideradas masculinas, nos dedicamos à vida acadêmica, escrevemos, pintamos, pesquisamos, descobrimos elementos radioativos (Oi, Marie Curie!; e tudo isso bem antes de Woolf).
Contudo, a discussão permanece atual quando nos apegamos aos detalhes do cotidiano, quando observamos que muitas atividades, domésticas e de cuidado, ainda são majoritariamente atribuídas a nós, quando ganhamos menos que os homens, quando dispomos de bem menos tempo – e dinheiro – porque nos submetemos a procedimentos estéticos que nos padronizam, essa eterna prisão que nos impede de conquistar o mundo.
Por tudo isso, me surpreendi tanto ao ler Caderno Proibido, da escritora italiana Alba de Céspedes, que me foi apresentada por minha amiga Clara há alguns dias. Em 1950, Céspedes publicou esse livro, um diário de uma mulher comum, ordinária, esposa, mãe de dois filhos, dona de casa e que também trabalha fora. Valeria, nossa protagonista, vê sua vida se transformar completamente após comprar um caderno e nele começar a narrar cenas de seu cotidiano. Banal, não é? O romance, um emblema de como um gesto simples, como dispor de um tempo sozinhas, e mesmo escrever, pode nos ajudar em nossa emancipação e expandir os limites que impomos a nós mesmas, atua como um espelho literário do ensaio de Woolf.
Mudar a língua, seja escrevendo ou lendo, embora não possua um fim em si mesmo, e aqui eu retorno a Barthes, é concomitante com mudar o mundo.